quarta-feira, 28 de abril de 2010

Aquilo de que nos fala o que vemos



"--Já sei que você vai rir de mim -- replicou o pintor --, mas o fato é que não posso expô-lo. Pus demasiado de mim mesmo nele.
Lorde Henry estirou-se, rindo, no divã.
--Eu sabia que você ia rir; mas é absolutamente certo, apesar de tudo.
--Demasiado de você mesmo nele! Palavra, Basílio, não o julgava tão vaidoso; não encontro, francamente, nenhum traço de semelhança entre você, com a sua fisionomia carrancuda e enérgica, o seu cabelo preto como carvão, e esse jovem Adônis, que parece feito de marfim e de pétalas de rosa. Porque ele, meu caro Basílio, é o próprio Narciso, e você...bom, naturalmente você tem uma expressão inteligente e tudo o mais. Mas a beleza, a verdadeira beleza acaba onde começa a expressão intelectual. A intelectualidade é em si mesma um modo de exagero e destrói a harmonia de qualquer rosto. Desde o momento em que alguém se senta para pensar, torna-se todo nariz, ou todo fronte ou alguma outra coisa assim horrenda. Repare nos homens que triunfaram nas profissões intelectuais. Como são, de fato, hediondos! Exceto, naturalmente, na Igreja. Mas, na Igreja, não pensam. Um bispo repete, aos oitenta anos, o que lhe ensinaram a dizer aos dezoito, e a conseqüência natural é que tem sempre um aspecto absolutamente delicioso. O seu jovem e misterioso amigo, cujo nome você nunca me disse, mas cujo retrato realmente me fascina, não pensa nunca. Estou absolutamente certo disso. É uma bela criatura sem miolos, que poderia sempre substituir aqui, no inverno, as flores ausentes, e refrescar-nos sempre a inteligência, no verão. Não se vanglorie, Basílio; você não se parece em nada com ele."


Esta foi certamente uma das passagens que mais me marcou em O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Tanto pelo sentimento de vulnerabilidade do artista que em sua pintura colocou demasiado de si, quanto pela bela fala de Lorde Henry. De início eu considerava o fragmento um exemplo do que já se considerou "o mal da modernidade" (T.S.Elliot) - a dissociação entre o sensível e o racional - pela maneira como o belo parece inconciliável com o intelectual; mais tarde me pareceu justamente o contrário¹; trata-se da aplicação ao homem do pensamento comum à arte de que forma e conteúdo são indissociáveis. Isso deve equivaler a dizer que o que é percebido formalmente é imediatamente lido de maneira que informa algo que está para além do observável. Que, por exemplo, a mão áspera e calejada de um trabalhador informa sobre a aspereza de sua vida ou sobre o tipo de trabalho que executa, da mesma maneira que os olhos de alguém podem falar de sua origem, ou de seu humor e a maneira como alguém se veste ou escreve, falam de sua personalidade. Poderíamos chegar a considerar práticas medicinais alternativas, como a iridologia, que atentam-se à traços observáveis no corpo para diagnosticar males que não chegam a se manifestar de maneira direta.

Mas porque, neste sentido, a beleza emudece?

De início poder-se-ia dizer que o sentimento de beleza seja subjetivo e que por isso não há muito dele que possa ser dito, afinal, dependeria de gosto e "gosto não se discute". Segundo Kant, filósofo alemão do século XVIII, no entanto, o belo permite a reivindicação de universalidade: teoricamente todos concordariam que algo belo é belo se alguém assim o considera.'Teoricamente' porque o filósofo diz que sobre o juízo de gosto se discute sim, mas não se disputa. Ou seja, pode-se exigir concordância, mas não há como comprovar ou demonstrar conceitualmente o belo porque ele não permite conceituação; ele agrada, sem conceitos. Assim, o belo deve permitir ao menos que façamos analogias com outras coisas que propiciam sentimentos semelhantes. Não por acaso, referindo-se a Dorian, o personagem de Oscar Wilde faz menção a uma figura mitológica e à beleza da natureza - arte e natureza seriam justamente as duas coisas capazes de propiciar uma experiência estética, de acordo com o pensador alemão. O "jovem Adônis" que "parece feito de marfim e de pétalas de rosa" é fascinante. A pele branca deve ser homogênea, sedosa e tenra, deve possuir linhas harmoniosas que remetem à noções de preciosidade, pureza, suavidade, delicadeza; perfeição, enfim. Não deve haver nele qualquer vestígio de inconformidade - é "sem miolos" porque é pura concordância e comprazimento; conformação e encanto. Noções que, obviamente, evidenciam o prazer do contemplador - prazer estético; O prazer emudecedor da contemplação da perfeição.

A intelectualidade, por outro lado "destrói a harmonia de qualquer rosto", não tanto, creio eu, por ser "em si mesma um modo de exagero", já que a beleza também o deve ser, mas justamente porque recusa conformidade, adequação e delicadeza - ela não pode ser harmônica devido a sua própria inconformidade. Assim, ela inspira materiais bem menos nobres, como o "carvão" e, "carrancuda" e "horrenda", não é prazerosa.

Por mais que tais associações sejam cotidianamente imediatas e involuntárias, é interessante que nos tornemos criticamente conscientes da maneira que lemos as coisas que vemos. Tais considerações podem permitir, afinal, generalizações perigosas. A atribuição de defeitos morais ao que se considera feio, por exemplo - como a beleza, a feiúra se funda subjetivamente; caracterizada como "exótica" ela pode ganhar conotações diversas - como o ar de intelectualidade sugerido por Lorde Henry. É necessário ter em conta, de toda forma, que muitas considerações podem apontar mais para nossos preconceitos e para noções fundadas em estereótipos grosseiros do que para qualquer característica própria do objeto de análise.

Em última instância, o esquema deve ser visto com alguma desconfiança. O que dizer, por exemplo, de alguém de proporções e traços "justos" e simétricos que se revela um ladrão? ou de alguém que parece ingênuo e se revela astuto? ou que parece saudável e se revela doente?*
O erro no julgamento denota a ruína de todo o esquema ou simplesmente uma percepção falha?
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*“Quando pessoas e civilizações se tornam degeneradas e materialistas, elas sempre apontam para sua beleza externa e suas riquezas, e dizem que se o que elas estavam fazendo fosse errado, elas não estariam tão bem, tão ricas e tão bonitas. As pessoas na Bíblia, por exemplo, fizeram exatamente isso quando adoraram o bezerro de ouro, e os gregos também, quando adoraram o corpo humano. Mas beleza e riquezas não têm nada a ver com quão bom você é, é só pensar em todas as beldades que tiveram câncer. E muitos assassinos são bonitos, então isso resolve a questão.”
Andy Warhol