sexta-feira, 8 de março de 2013

Vida, trabalho e arte

Compreendemos melhor o significado de pensar a vida como obra de arte se a pensamos segundo formas conhecidas de arte. Sabemos que na execução de uma orquestra, ou de uma pintura, por exemplo, cada movimento é em alguma medida calculado, e que, no entanto, o mais importante delas escapa ao que permite o cálculo. O "coeficiente artístico", como dizia Duchamp, é consequência das surpresas e dos imprevistos que surgem pelo caminho. Pois não temos poder sobre a forma como as vontades e decisões dxs outrxs afetam as nossas, e embora possamos ensaiar em conjunto, a experiência ocorre sempre com um quê de improviso, como numa espécie de jogo mais ou menos combinado: a obra da vida se faz sempre ao vivo.

Consideremos o despertar de nossa vida sensível; quando ouvimos os primeiros sons, e sentimos os primeiros movimentos, desde o ventre materno; consideremos ainda também o momento em que abrimos pela primeira vez os olhos: talvez tenhamos nos habituado com tantos estímulos sensíveis, mas a verdade é que eles nunca deixaram de ser outros. Se, por um lado, o mundo existia desde muito antes de nosso nascimento, por outro, ele existia apenas segundo realidades diversas das nossas, pois, afinal, realidades constituídas a partir de outros corpos. Para nós que nos identificamos com estes corpos e pontos de vista que temos das coisas no mundo, a nossa percepção, inclusive da diferença em relação a nós mesmos, é absoluta; o mundo é absolutamente novo!

Ao menos à princípio.

Pois quando somos bebês, choramos e gritamos como pequenos tiranos; mal sabemos comunicar nossas vontades, mas tentamos de todas as formas. Somente aos poucos vamos descobrindo que o mundo que nos é dado à consciência se estabelece pela experiência do corpo - do nosso corpo: este que, embora em tão grande medida dependente de tantas coisas, não tem limites tão certos.

"O que pode o corpo?", perguntou Espinoza.

A criança, antes de interrogar, experimenta. Para ela, toda a existência é coextensiva em relação à experiência de seu corpo. É, pois, pelo corpo que descobrimos e admitimos a existência de uma realidade-mundo. Que este seja um fenômeno interrompido quando chegamos à idade adulta é algo que apenas artistas costumam contrariar.

"Onde há crianças, ali é uma idade de ouro"

Isto indica Novalis, mas digo por minha própria experiência. Creio que me fiz artista porque não pude me conformar totalmente com a negação de minhas vontades, nem quis me deixar enrijecer, como outros de minha estatura, para realiza-las por força de qualquer espécie de "autoridade". Aprendi, desenhando, a arte da contemplação, e desenvolvi minha sensibilidade a ponto de me deixar afetar e construir junto ao desdobramento do mundo. Hoje penso que os conflitos e as contradições que definiriam os limites de minha experiência se tornaram meu objeto de trabalho.

E enquanto considero "cálculos" na possibilidade de ensaio e organização coletiva, intimamente anseio por cálculos menos matemáticos - tão técnicos -, e mesmo filosóficos - por aquela aridez que mesmo Hegel reconheceu -, e mais poéticos. Pois é de uma orquestra que estamos falando! Para isso ser possível, é preciso dar margem à nossa vontade infinita de experimentação, e ao livre desenvolvimento da nossa imaginação criadora, pois este é certamente o cálculo de tipo mais apreciável. É preciso, para sermos mais "pragmáticos", uma educação estética. Até porque, se consideramos o estado de plenitude da experiência estética, todos devemos concordar com o desejo de uma vida como obra de arte, não? Uma vida em que a possibilidade de criação simplesmente não cesse.


Sem maiores atropelos, portanto, nos ocupemos com o que está para além de qualquer interesse não poético, e vamos exigir juntos o espaço que isso requer: espaços de arte, afinal. Porque somos artistas, e desejamos ser artistas em nossos trabalhos - que precisarão ser outros se não puderem assim nos receber: livres!

Consideremos, como fontes de inspiração, xs poetas que vivem pelas ruas, e também xs malabaristas. Estxs "vagabundxs" são muito preferíveis aos trabalhadores esforçados que todo dia se esgotam por dinheiro sem nem bem poderem suportar o sentido daquilo que fazem. Pois estes últimos acomodaram-se com o que lhes permite o salário, e, como velhos adultos, já não criam. Com maior ou menor satisfação, adequam a ideia que fazem do que seja o sucesso à possibilidade de "ascensão social", sem perceber que desse modo naturalizam hierarquias e preservam exatamente a estrutura que nós, artistas libertários, queremos ver ruir, apenas para que então ressurja um novo mundo: um mundo com condições menos desiguais para a realização do espírito; o que afinal é de interesse comum.

A ideia de uma vida livre, delirante, é muito pouco compatível com os princípios utilitaristas que justificam a existência e o uso de coisas como automóveis, por exemplo, em nossos dias. Se reconhecêssemos o interesse em cultivar este tipo poético de comportamento e quiséssemos um modo de vida compatível, precisaríamos de meios de transporte mais lentos, mais seguros, saudáveis, prazerosos; como bicicletas! Precisaríamos nos orientar a alguns dos inúmeros exemplos de experiências autogestionárias e cooperativas para ver que é possível manter relações sociais horizontais e não autoritárias. Precisaríamos instrumentalizar menos o nosso tempo, para viver mais. O presente não deve ser sacrifício por uma esperada recompensa futura: se as condições em nosso trabalho são estas, devemos recusá-lo! Assim como devemos recusar também os medicamentos e tratamentos que pretendem assegurar a adequação do nosso espírito a esta estrutura, como se ela não pudesse ser outra. É a conformidade com o sentimento de impossibilidade de plena realização de nossa potência de vida que deprime. É preciso lembrar que essa realização é na vida o que mais importa, e que o trabalho, enfim, deve estar à serviço desta verdade: próximo do estado da arte.

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Sobre a relação entre arte e trabalho fala Jacques Rancière, no fim d'A Partilha do Sensível. Também Michel Löwy ressalta com frequência, neste aspecto, as bases românticas do pensamento de Marx. Bases estas que nos remetem, sem equívocos, ao embate entre Marx e Bakunin nos tempos da Associação Internacional dos Trabalhadores, e que permaneceram bastante vivas nos escritos de alguns dos maiores críticos de arte do século XX, como Herbert Read e Mário Pedrosa.