quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Brega

Já não é criança, mas ainda encanta-se com a vida. Passa pelas coisas e pelas pessoas, atenta, mas sem prender-se a nenhuma delas. Move-se como se a gravidade não fosse tanta, sorri com facilidade, canta e dança. Sabe intimamente que está de passagem e deseja por isso passar bem. Dry Martini com azeitona; Gal Costa em disco de vinil. Tem medo da solidão, mas quando numa encruzilhada qualquer alguma coisa se complica, dispensa companhias sem grandes problemas. Finge uma clareza a respeito de si que não possui, apenas para manter-se fiel a seu caminho. Sabe que o mais importante é manter-se em movimento. De perto, os olhos felizes, hipnotizantes, revelam alguma angústia; nunca o suficiente para que se voltem para trás. Naquela encruzilhada em que me deixou já não espero, mas não nego a esperança de algum dia nesse labirinto te reencontrar.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Se discorro lentamente sobre questões de pouco interesse aparente e pareço pensar devagar, é para pavimentar bem o percurso do pensamento e descobrir na sua construção tantos sentidos quanto possíveis. Quero explorar todos os caminhos, talvez por ansiedade, mas não sem cautela. Como sei que não é possível, exploro o suficiente ao menos para descobrir os sentidos mais promissores. Estes sim percorro. Claro que nesse percurso corro o risco de desenvolver um texto aparentemente já codificado, e nesses momentos devo soar...ingênuo, talvez, mas não me importa. Escrevo para melhor elaborar o pensamento, principalmente, talvez, quando me repito e repito outros antes de mim. Nunca sei bem ao certo pra onde vou, mas o corpo segue junto. Sei que dessa forma registro de algum modo a particularidade desta trajetória; meu contínuo movimento no tempo presente. Com registros permito acompanhamento, e é verdade que o desejo: filosófico, até psicanalítico, mas sobretudo afetivo, pq, afinal, trata-se de uma trajetória poética. Talvez tanto esmero sobre tantas minúcias aborreça o leitor, mas a mera possibilidade de ter um faz com que me sinta menos sozinho. O significado histórico é a maior razão do que deixo. Comunicar minha sensibilidade pensante para permitir pela experiência de meus leitores, a sobrevida de meu próprio espírito. Ambição romântica, bem sei, não nego.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Algumas ideias sobre a vida e sobre a arte

Esqueça o nome “arte”. Arte é apenas o nome dado à experiência que temos em relação a determinadas coisas e, embora possamos não estar bem conscientes do que sejam, todos produzimos coisas; é o que importa. A experiência que estas coisas que todos produzimos proporciona, embora possa ser, em alguma medida, significativa, tende a ser ordinária, geralmente devido às finalidades instrumentais a que servem estas produções na rotina de nossos dias. A maioria delas ocorre espontaneamente, às vezes sem muito empenho, meio que por acidente, de modo intuitivo e muito pouco consciente. Embora por diferentes razões possam ser muito importantes e necessárias, a verdade é que sentimos ter pouca razão para nos orgulharmos da maioria delas e muito pouco desejo de exibi-las por aí. É o que ocorre, por exemplo, com o café que preparamos pela manhã, com os pratos que preparamos para o almoço, com os arranjos de palavras que produzimos para nos comunicar, com a maneira como nos vestimos e conformamos nosso ambiente, e mesmo com coisas mais naturais que exigem, no entanto, algum trabalho, como a nossa urina, a nossa merda, e o nosso lixo cotidiano.

Tais produções cotidianas, em geral, não requerem grandes conhecimentos ou capacidades. Basta estar vivo e fazer o mínimo. Algumas exigem corpo forte para erguer pesos, ou minimamente saudável, para pressionar teclas. Geralmente apenas a capacidade de repetir ações determinadas, mecânica e indefinidamente, basta – são produções que ocorrem a partir de trabalhos que chamamos “braçais”.

Outras coisas exigem conhecimentos mais específicos. Para executar estes trabalhos propriamente é necessário, ou ao menos recomendável, passar por um período de aprendizado mais ou menos demorado, dependendo do caso. Geralmente, qualquer um que tenha a formação adequada consegue executar estes serviços já que o conhecimento, quando não puramente técnico, exige mínima capacidade crítica.

Há produções, no entanto, para as quais não bastam trabalho braçal, técnica, ou mesmo quaisquer conhecimentos adquiridos. Estas produções podem envolver certamente todos estes elementos, em maior ou menor grau, mas dependem fundamentalmente de traços muito particulares da sensibilidade do indivíduo que tem em si a capacidade de produzir tais obras. O nome “arte” está ainda muito carregado de concepções relacionadas a produções de tipo muito específico, dependentes, diretos ou indiretos, de uma tradição de instrumentos como o piano, ou o pincel, a tela e o cavalete. Mas independente de quaisquer instrumentos, o que  a história da arte evidencia é a possibilidade de não ordinariedade da experiência proporcionada por certas produções humanas. Quem, em seus tempos, seria capaz de compor peças como as de Lizst, ou pinturas como as de Van Gogh? O desejo muito comum de ser capaz de produzir arte é relativo ao desejo humano de eternizar o próprio espírito produzindo algo ao longo da vida que ninguém mais seria capaz de produzir. Não pela produção "em si", mas pela experiência "única" que esta produção permitiria. Que sentido faz que, para este fim, nos restrinjamos a campos e materiais específicos? A verdade é que se encontrarmos formas de realizar em nosso trabalho a nossa singularidade, então nos reconheceremos nele, desinstrumentalizaremos a experiência vivida e escaparemos do ordinário, pois então produziremos arte. Há quem defenda que isto pode ser um prato de comida, arranjos de palavras, e mesmo nosso lixo cotidiano. Se haverá uma história para estas produções, creio que cabe em grande medida ao empenho com o qual as compomos (e registramos).


*


*

As formas produzidas ao longo da vida de um sujeito revelam o sentido em direção ao qual sua energia vital foi dedicada e despendida. Certas produções exigem modos de vida muito particulares, porque exigem a orientação massiva da atenção do indivíduo para uma direção muitas vezes absurda, por um longo período; às vezes, o de uma vida. Outras produções exigem modos de vida indiferenciados.


Embora seja costumeiro celebrar a riqueza e a multiplicidade da cultura de um país como o Brasil, não devemos deixar de reconhecer suas limitações. Os sentidos em direção aos quais nossas produções culturais apontam raramente revelam-se, por nossa própria faculdade crítica, admiráveis. O que ocorre é a absorção de toda produção cultural por um mecanismo industrial basicamente regulado por interesses individuais que tendem à superficialidade. Treinado mecanicamente neste contexto para assimilar ligeiramente estímulos e fazer escolhas a todo momento, o sujeito contemporâneo tem dificuldade de concentração, sofre de ansiedade, ataques de pânico, fadiga, problemas de sono, depressão (ver autores como Claude Dubar, Ulrich Beck, Zygmunt Bauman). Os focos admirados, como os discursos anunciados, revelam-se pouco claros, geralmente programados; as formas desenvolvidas, domesticadas; o sentido da vida, em particular, incerto.

No que se refere ao trabalho, o foco efetivo tende a deslocar-se da experiência prática propriamente dita, em direção à questão econômica. Em última instância, a desapropriação generalizada da produção por parte daquele que produz, na medida em que revela o distanciamento entre o indivíduo e a própria vida, evidencia a impropriedade do projeto, certamente utópico, de considerar a arte em todos os âmbitos da vida. Neste contexto, instituições específicas fizeram-se historicamente necessárias para abrigar experiências "distintas" porque válidas em si mesmas, não instrumentais ou interessadas como as demais atividades humanas. A existência de um campo da produção cultural que se coloca como exceção - "ilha da liberdade", campo autônomo e lúdico de apropriação e experimentação estética e discursiva - acaba, entretanto, por legitimar seu oposto - o cotidiano infernal, mas banalizado, onde a submissão, a exploração e a exclusão revelam um lado da cultura menos atraente, mas responsável por alguns de seus aspectos mais determinantes.


Embora idealmente indesejada, a autonomia é uma necessidade assegurada institucionalmente para a existência da arte em condições desfavoráveis a ela. A simples existência "autorizada" destas instituições, no entanto, sugere o aspecto não nocivo e ordinário, do ponto de vista político e econômico, da produção cultural que estão encarregadas de abrigar. Com efeito, a arte, como em alguns aspectos o esporte, revela-se um campo necessário para a preservação da ordem e do estado geral de coisas, de modo que é, portanto, indiretamente instrumentalizada: algo de que "o sistema" consolidado se utiliza e necessita para sustentar a possibilidade de formas culturais absurdamente contraditórias, dependentes umas das outras, em um mesmo período.

Julgo importante destacar este ponto para melhor compreender o modo como a própria noção de autonomia é operacionalizada e, por conseguinte, como essa operacionalização, ao alterar e direcionar o sentido de propostas poéticas, pode ser, na medida em que reconhecida, recuperada, revertida, apropriada e/ou aproveitada. Entre a inocuidade de propostas poéticas que parecem uma espécie de consolo ou lamento pelo mal-estar generalizado da modernidade, ou uma atualização da política de pão e circo,  pura celebração; entre a espetacularização e o engajamento político; entre os nomes de artistas que convertem-se em grifes, e a lavagem de dinheiro, a minha suspeita é que o campo permite, pela própria estranheza de seu lugar, tipos de potência muito distintos dos mais usuais. Compreender esse mecanismo não é fácil e escrevendo estes textos admito não querer esclarecer tanto a meu leitor ou leitora quanto a mim mesmo.

Não há dúvida de que atuam no meio artístico muitas pessoas com consciência política, senso crítico e interesse efetivo em produções não ordinárias, ou, para pôr de outra forma, produções que escapem às tendências homogeneizantes da indústria cultural. Daí haver espaço nas instituições para propostas poéticas críticas, muitas das quais chegam a questionar os próprios moldes institucionais, muitas vezes de modo irônico, contraditório e problemático. É o interesse por esse tipo de proposta que me orienta, na primeira parte desse texto, e em minha vida pessoal, a pensar a produção cotidiana como possibilidade de arte.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

as contradições expostas - alguns questionamentos sobre arte e vida

Se considerarmos a abertura do campo da arte e sua aproximação da vida, que significa que artistas, curadores e as pessoas da arte, de um modo geral, sejam invariavelmente iniciadas e treinadas num campo de tradição tão específica quanto a que chamamos moderna? Que especificidades ainda interessam à arte resguardar? Que há efetivamente de ruptura e de continuidade na contemporaneidade? Por que para tantos do meio artístico ainda causa estranhamento e perplexidade a presença da pichação, por exemplo, em campo institucional? Pode esse estranhamento ser visto de modo positivo, tal como hoje consideramos aquele que impediu a absorção institucional imediata dos ready-mades de Duchamp? Por que, de qualquer forma, curadores ainda se prendem a artistas que se relacionam a uma tradição específica para identificá-los? Não seria uma extensão natural do reconhecimento da arte para além do seu campo mais tradicional que artistas sejam reconhecidos sem que saibam sê-lo? Se já não temos grandes gênios e grandes mestres como os do passado, não será esse o passo definitivo no questionamento da patota que ainda resta? Em última instância, o ensino da arte deveria reorientar-se para uma análise estética do mundo muito mais ampla do que a proposta pelas grades atuais. A tendência ao entrecruzamento de áreas, ou a chamada transdisciplinaridade, precisa ser assumida de forma definitiva.
...
Se para reconhecermos algo como arte é necessário deter-se minimamente sobre uma proposição estética qualquer, talvez o sentido da absorção da pichação e mesmo do chamado anarco-funk pelo campo seja apenas permitir lançar sobre este tipo de produção admiração crítica mais séria. O que talvez seja contraditório, mas revelador da condição díspar de nossa cultura, é que certas produções culturais precisem da atribuição de um nome e da inserção em um determinado meio, para ter seu interesse estético e político comprovado. Mas esta é a razão pela qual arte e vida não estão ainda bem fundidos: o espaço da vida não possui a dignidade tradicional do espaço da arte e, distante de ideais, é considerado impróprio para considerações de ordem estética mais detidas. Mas que pretende o campo artístico dando a ver como produção estética significativa de nosso tempo tais produções? Ora, o uso da instituição para que a potência de afeto da obra proposta se alastre por uma certa esfera da sociedade é já uma estratégia de ação política. Se nos causa desconforto que certas proposições não sejam sedutoras ou prazerosas, não será pelos valores burgueses tradicionais que deixam de afirmar? A transformação da experiência proposta não pode justamente ocorrer a partir da necessidade de lidar com a difícil experiência que nos proporcionam? Não serão seus efeitos destrutivos justos com o projeto poético-filosófico de uma vida como obra de arte?

terça-feira, 21 de agosto de 2012

citações

“A ficção não é considerada como fazendo parte do mundo. O racionalismo confina a ficção ao domínio das categorias literárias para proteger seus próprios interesses, seus próprios sistemas de saber”
Robert Smithson

"Tento efetivamente privilegiar modos de escrever a história, modos de apresentar as situações, de agenciar os enunciados, modos de constituir as relações entre causa e efeito, ou entre antecedente e consequente, que perturbem as referências tradicionais, os modos de apresentação dos objetos, de indução das significações, e dos esquemas causais que constroem a inteligibilidade standard da história. Um discurso teórico é sempre uma forma estética, uma reconfiguração sensível dos dados sobre os quais ele argumenta. Reivindicar o caráter poético de qualquer enunciado teórico também é contestar as fronteiras e as hierarquias entre os níveis de discurso. O que nos remete para o nosso ponto de partida."
Jacques Rancière


“‘Ao invés de lançarmos indiscriminadamente nossas pedras sobre os produtos artísticos dos quais as classes opressoras econômica, política e culturalmente se assenhoram, não seria mais revolucionário culturalmente fazer incidir um dos focos de luta contra valores estéticos que a classe dominante defende como eternos e imutáveis e através dos quais sua impostação de superioridade se perpetua?’


Alegar que a arte é supérflua fundamentando-se no entendimento de que ela é elitista contribui para que a arte continue sendo instrumentalizada por poucos. Isso ‘não apenas não é justo, como também, e isso nos parece o mais importante, não é estratégico como forma de luta. Não se quer com isso afirmar que a arte pode, por si só, mudar o curso da história, mas pode isso sim, constituir-se num elemento ativo desta mudança". (Santaella, L. Arte e cultura: equívocos do elitismo. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1995. Biblioteca da educação. Sperie 7. Arte e Cultura; v1. 115p.)



Parece ser que es uma dificultad típica de nuestra época. Sólo hay uma elección posible que desemboca em dos métodos igualmente extremos: o bien plantear una realidad enteramente permeable a la historia y hacer ideología, o bien, por el contrario, plantear uma realidad que es em última instancia impenetrable, irreductible y, em este caso, hacer poesía. Em suma todavía no veo posible una síntesis de ideología y poesia (por poesía entiendo, de manera muy general, la búsqueda del sentido inalienable de las cosas). Roland Barthes, Mitologías, 1957.



“toda arte nasce de uma concepção ideológica do mundo; uma obra de arte inteiramente desprovida de conteúdo ideológico é coisa que não existe.” (G. Plekhanov)


"A arte é alérgica a qualquer tipo de recaída no âmbito do mágico, é parte do desencantamento do mundo, para utilizar a expressão de Max Weber. Está inextricavelmente  vinculada à racionalização. Todos os meios e métodos de produção que a arte tem a sua disposição derivam deste nexo". Adorno



 “...o trabalho do artista, mesmo na sua parte mental , não pode se reduzir às operações de um pensamento determinante. De uma parte a matéria, os meios, o instante, e uma porção de acidentes ( os quais caracteriza o real, ao menos para aquele que não é filósofo) introduzem na fabricação de uma obra uma quantidade de condições que não somente introduzem o imprevisto e o indeterminado no drama da criação, como tendem a torna-la racionalmente inconcebível, uma vez que a inserem no domínio das coisas, pois ela se torna uma coisa, de modo que o pensamento se torna sensível. [...] O artista não pode abrir mão de um sentimento arbitrário. Ele procede do arbitrário em direção à uma necessidade, e de certa desordem em direção a uma certa ordem...”
p. Valéry.

 “O projeto de pesquisa em artes visuais, equivaleria a um projétil, algo que é lançado com uma mira. Mas o caminho exato que irá percorrer nunca sabemos. Pierre Soulages, declara que ‘o que faço me esclarece o que procuro’ revelando de certo modo a cegueira do artista no processo de criação [...]” (Rey, Sandra. Da prática à teoria: três instâncias metodológicas sobre a pesquisa em poéticas visuais)

[Poetry] may make us from time to time a little more aware of the deeper, unnamed feelings which form the substratum of our being, to which we rarely penetrate; for our lives are mostly a constant evasion of ourselves.
T.S.Eliot

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A ruína assistida e o lugar do prazer na arte contemporânea - questões para além da crítica

O prazer é uma potência da arte historicamente assegurada pela tradição moderna e é uma das maiores causas de nosso interesse pela arte. Se tradicionalmente, no entanto, a experiência estética foi considerada transformadora e transcendente, capaz de propiciar portanto um tipo de prazer mais elevado do que o propiciado pelas demais atividades humanas, hoje o tipo de prazer que ela proporciona já não é bem claro. A noção tradicional de experiência estética foi em grande medida recusada, e ao invés de satisfazer o gosto pelo belo, agora o prazer da arte parece em grande medida ser o prazer da crítica, da ironia, da precariedade, do sadismo e da ruína assistida. Como a questão do prazer pode ser propriamente considerada nestas condições? Antes, é possível que seja? Acredito que sim.

*
Devido à posição elevada tradicionalmente conferida à experiência propiciada pela obra de arte, costumamos manter com ela uma relação marcadamente respeitosa. Este respeito pode ser percebido no arranjo formal da grande maioria das propostas curatoriais (limpas e muito bem organizadas, com distância razoável entre as obras, ainda dentro do modelo sugerido pelo "cubo branco", espaço neutro tradicional da arte), assim como na arquitetura mais ou menos suntuosa de grande parte dos espaços de arte, e especialmente em nossa própria atitude quando somos público. Nestas condições, falamos baixinho e mesmo quando podemos tocar nas obras, não o fazemos sem hesitação - em alguns lugares, sabemos que a aproximação excessiva faz disparar alarmes! Com isso, o suposto sentido transcendente da arte funde-se à garantia de seu prestígio social e de sua valorização econômica. A verdade é que em nossos dias desconfiamos tanto de uma coisa quanto de outra, de modo que a maioria de nós demonstre pelos próprios julgamentos apressados não achar no fundo a arte tão admirável assim. Invariavelmente, no entanto, buscamos considerar formas de inteligência nem sempre imediatamente reconhecidas, mas pela própria instituição, supostas. Permitimos que mesmo as propostas mais incômodas nos façam rever possíveis expectativas indevidas e cultivamos, dessa forma, nosso gosto pela arte. Forçamos muitas vezes a barra na busca de identificar razões para apreciar o que se apresenta - sentidos que suplantem eventuais frustrações. Nem sempre conseguimos - o que não necessariamente significa tratar-se de arte ruim. Para além de obras particulares, certas exposições como um todo contrariam os ideais do cubo branco e revelam-se, pelo próprio projeto curatorial, marcadamente precárias, repugnantes até: todo o polimento e a pretensa seriedade do espaço de arte são recusadas. Se era a distinção da arte a responsável pela admiração e respeito inicial, à recusa da distinção segue muitas vezes a perda do respeito e a incapacidade de admiração. Com ares de nostalgia com relação aos grandes mestres e gênios do passado lamenta-se a "banalização da arte", como se fosse um grave problema o fato de que estes adjetivos não se apliquem aos artistas atuais.

Na realidade, no entanto, desde algum tempo a arte tem usado de seu lugar tradicional de sedução para fazer admirar o que não costumamos admirar. Nesse sentido, pra muito além da aceitação imediata, ou do mero comprazimento do gosto, interessa à arte a admiração crítica. O prazer da arte contemporânea, é um prazer da experiência crítica, o que obviamente não ocorre em detrimento da experiência sensível, pelo menos não nos casos mais interessantes.

O desenvolvimento de nossa capacidade crítica é indissociável do desenvolvimento da modernidade. A mudança da forma de nossa admiração pela arte é acentuada já durante o século 19, quando Hegel afirmou que já não veneramos obras de arte como divinas e que nossa atitude diante das obras de arte havia se tornado fria e refletida: “o pensamento e a reflexão sobrepujaram a bela arte”, afirma o filósofo. Para Hegel, a modernidade era desfavorável à arte. De fato, com a modernidade a própria promessa de transcendência passa a ser explorada. Como mais tarde escreveu Adorno referindo-se à conhecida expressão de Weber: “a arte é alérgica a qualquer tipo de recaída no âmbito do mágico, é parte do desencantamento do mundo” e está “inextricavelmente vinculada ao processo de racionalização”. Se este é um fato incontornável, somos decerto ingênuos se desejamos na modernidade admiração sem crítica: é a própria arte que demonstra que esta não é uma possibilidade ao homem moderno.

Pelo contrário, é o exercício da crítica que devemos admirar; não tanto aquela que está além de nós mesmos, a que chamam “especializada” e que pode muito bem nos ajudar a pensar (não é vergonha reconhecer que há olhares mais treinados do que os nossos), mas sobretudo a nossa capacidade crítica, já que é a partir dela que nossos olhos alcançam pela forma proposta o processo, também crítico, de produção da obra. A admiração da arte é nesse sentido uma admiração de nossa inteligência, das áreas da mente que a forma proposta nos faz percorrer, e que o faz por remeter à experiência crítica do momento de produção da obra. Se esta percepção de processo de produção da obra é imediata no caso de performances musicais ou no teatro, nas formas mais tradicionais das artes visuais, tais como pintura e escultura, há uma conhecida distância. A obra se apresenta como trabalho pronto, objeto acabado, resultado a ser contemplado mesmo muito tempo após o momento de produção das obras. Se por um lado, a permanência destas obras é o motivo do evidente interesse histórico das artes visuais (o que podemos verificar pelo privilegio dado a elas pelas histórias da arte mais tradicionais), ela também é o que facilita sua gradual instrumentalização. Nesse sentido, é possível pensar o interesse pela performance nas artes visuais como oriundo de um interesse crítico em suplantar esta possível distância entre processo de produção da obra, e experiência da obra por parte do público (a importância de textos como "A Arte como Experiência" de John Dewey para artistas como Alan Kaprow, assim como de textos de autores como Adorno, Horkheimer e Guy Debord, para os chamados artistas conceituais, é reveladora).

No entanto, mesmo no caso de pinturas e esculturas, a apreciação da arte em sua dimensão processual é fundamental. Há, por exemplo, um tempo instaurado no movimento de uma pincelada e nela, certo esforço de produção a ser considerado. A percepção espacial deste tempo, tanto em elaborados esquemas perspectivos mais ou menos complexos, quanto no movimento de uma pincelada, tem a ver com a percepção da fatura da obra; esta percepção intuitiva e imediata é em grande medida o que torna a experiência estética sedutora intelectual e sensivelmente, talvez até o que justifique seu sentido transcendente: a percepção formal atualiza a experiência artística de modo particular e nega oposições entre elementos como razão e sensibilidade; elementos que nas demais zonas de nossa vida prática parecem absolutamente dissociados. De todo modo, em muitas propostas modernas a experiência crítica da produção da obra é pelo próprio desenvolvimento da modernidade distendida: ao invés de limitar-se, por exemplo, às propriedades pictóricas dos materiais mais convencionais, passa-se a questionar a representação, o uso de tintas, a moldura, o lugar tradicional da arte etc. Isso ocorre a tal ponto que o intervalo entre os momentos de produção de uma obra e outra, momentos em que o artista simplesmente vive, é em alguns casos também considerado com interesse artístico. É o que permite supor o projeto de tomar a vida como obra de arte: se a dimensão processual da arte realmente importa, este intervalo não seria de menor importância, como a forma do que se produz aí.

No entanto, o que se produz no intervalo de vida entre os momentos de produção de uma obra e outra, embora possa ser tomado com algum interesse, o que ocorre, por exemplo, quando lemos as cartas de Van Gogh a seu irmão, não é proposto à nossa percepção crítica como arte. Esta economia é decerto fruto do reconhecimento dos alcances muito limitados do trabalho de arte. A despeito de nossas intenções, por suas próprias condições, não parece haver como a vida ser tomada como arte. A arte ocorre nos momentos particulares em que a vida se consagra pela experiência, não como algo mítico, mas como algo que crítica alguma, por mais perspicaz que seja, é capaz de engolir, esvaziar, ou compreender completamente. O interesse pela arte vem justamente daí, do prazer oriundo do fato de que a admiração crítica do trabalho de arte por mais rica que seja, é insuficiente para abarcar todos os sentidos da obra. Posto de outra forma, os espaços que a obra abre são mais amplos do que nossa habilidade de percorrê-los. Por isso diz-se que arte "boa" seja inesgotável, e por isso é interessante considerar a autonomização da arte como uma decorrência necessária para a manutenção da arte após o momento em que ela se afasta da religião. Nossa existência estética, nossa vida em corpo, assim como nossas produções estéticas mais cotidianas não resistem, por seus interesses, à admiração crítica a que a arte se propõe (embora esse seja o grande projeto moderno e contemporâneo - com isso quero sugerir continuidade ao invés de ruptura). Por isso, com o desenvolvimento da modernidade e da racionalidade, e com o gradual descolamento entre arte e religião, os altos ideais da arte exigiram lugares e momentos específicos para realizar-se: as cortes, os limites de telas, a proteção de uma instituição autônoma. Obviamente, as decorrências (econômicas e sociais) da realização da arte em um campo afastado, de um lado, da religião, e de outro, ao menos pretensamente, da vida prática, foram fatalidades: no contexto político e econômico vigente, a história demonstrou a impossibilidade de afastamento dos interesses mais imediatos da vida prática; como bem exemplifica o uso comercial de registros de obras conceituais dos anos 60 e 70, mesmo as investidas mais críticas da arte foram logo instrumentalizadas. Hoje, a mesma percepção crítica que afastou a arte da religião, desligando-a da divindade, tende a conectá-la ainda mais à terra (o processo moderno de desencantamento não tem fim), negando muitas vezes qualquer possibilidade de transcendência e destacando, em seu lugar, os sentidos econômicos e políticos que, de modo direto ou indireto, faz ver.

O projeto de aproximação entre arte e vida torna impossível que uma pintura seja hoje admirada sem que se considere questões sociais e econômicas. Para uma percepção da arte “em campo ampliado”, sua forma não está dissociada da forma do próprio circuito que integra. Por isso, a mesma percepção formal que permite reconhecer o trabalho crítico relacionado à fatura da obra num nível físico, hoje busca reconhecer o mesmo tipo de trabalho crítico exercido em um campo mais extenso. É por isso que muitas vezes o interesse físico da pintura, relação entre cores, por exemplo, é suplantado por percepções que englobam problemáticas econômicas e sociais (é a física da arte que se amplia para o campo político e social). Como decorrência desta tendência inevitável à crítica, a pintura é muitas vezes tomada de modo contraditório, ou absolutamente negada. 

O sentimento generalizado é que em muitos aspectos a arte avança no sentido de adensar-se cada vez mais em direção ao desencantamento, à racionalidade calculável e conceitual, quando é na realidade coisa encantada, intuitiva e sensível. Mas a oposição entre racionalidade e encantamento tem sido problematizada na própria arte há algum tempo. A bem da verdade, mesmo na antiguidade, a arte sempre foi, na medida em que estética, bem material, e esteve por isso presa às leis da física, mesmo quando não eram bem conhecidas. Agora que regulações supostamente mais concretas e determinantes, sejam elas de ordem física, histórica, econômica ou social, se fazem conhecidas, o desafio é apontar para além desta aridez.

O encantamento pode ser considerado em todos os momentos da arte pela preservação constante de uma dimensão utópica: enquanto esteve conectada à mitologia e à religiosidade; quando o ideal de um campo autônomo foi constituído; e quando foi negado, com o projeto de aproximação entre arte e vida. A utopia que marcou o início do modernismo foi a utopia estética que na pintura aparecia de modo exemplar na exploração de sua fisicalidade – o que se relaciona tanto ao reconhecimento do plano da tela, quanto aos incansáveis estudos de cor dos modernistas. Com isso, é a própria crise da modernidade e da utopia do plano e da cor que revelam o deslocamento da questão do prazer da arte. Se é legítimo questionar-se acerca do prazer na arte contemporânea, devemos buscá-lo na utopia que levou a este desmantelamento: a utopia de fusão entre arte e vida. Não é acaso que os ready-mades de Duchamp sejam marcos tão fundamentais à produção contemporânea, assim como as colagens de Picasso, os rasgos de Fontana, o pop de Warhol, a caixa de sapato de Orozco e, mais recentemente, a pichação, proposta por curadores como Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos na vigésima nona Bienal de São Paulo, e o funk e a imundície, propostos por Clarissa Diniz e Paulo Herkenhoff, na Contrapensamento Selvagem, parte da exibição Caos e Efeito, no Itaú Cultural, também em São Paulo. Me parece de especial interesse nestes últimos casos que o papel propositivo dos curadores seja mais destacado do que o dos autores das obras em particular. Uma vez que artistas estão tanto dentro quanto fora do campo institucional da arte, em toda parte, os curadores são os que se vêem em condições privilegiadas de articular e visibilizar propostas de maior porte e densidade, reconhecendo arte onde acham mais urgente a necessidade de admiração crítica. Enquanto projeto político, é enfim um prazer que o campo institucional da arte permita enfrentamento das coisas que causam desconforto. Não há com isso tudo qualquer sinal de decadência, mas de um longo caminho a percorrer. Quanta coisa precisa mudar pra que a admiração destas coisas não nos cause desconforto? e se algo precisa mesmo mudar, esta necessidade se coloca no outro ou em nós?

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

segunda-feira, 30 de julho de 2012

artista. a força e a ironia do desígnio

Se em alguma ocasião ocorre de precisar me dizer artista, sei que evoco algumas noções mais ou menos distintas a meu respeito e a respeito do que faço. A maioria das ideias é profundamente romântica, o que não significa que sejam totalmente desprovidas de sentido. A arte esteve de fato historicamente associada aos mais altos ideais da humanidade, e agora, mesmo que a maioria das pessoas não entenda patavinas do que ocorre na produção contemporânea, a verdade é que algo destes ideais permanece. Com isso, também sei que quando me digo artista evoco alguma suspeita. As pessoas querem logo ver o que faço, reconhecer em meu trabalho a "aura" que o desígnio atrai. Aí, se pinto um quadro, geralmente isso basta. É um mistério porque na realidade ninguém entende exatamente de que se trata. Nem eu; nem meu pai; nem Kant. O lugar da arte entre as demais atividades humanas não é bem certo, e em certa medida, ela parece pertencer a uma esfera alheia à esfera da vida prática - embora já não concordemos bem com isso. De todo modo, algumas pessoas chegam a assumir-se artistas desejando atrair sobre si esta distintividade misteriosa da arte. Talvez por isso alguns de nós se vistam de modo estranho... o que, todavia, obviamente, não basta pra ser artista...basta? Pra distinção do artista ser justificada de verdade, é preciso por à prova certa vocação ou talento, certa sensibilidade. Mas isso todos têm, não? Justamente! Por isso o desígnio causa admiração e suspeita: lá no fundo as pessoas sentem que também elas poderiam ser artistas se tivessem investido suas forças vitais na direção de suas vocações: ainda que sigilosamente, a maioria das pessoas canta, dança, desenha, batuca, fotografa...Pelo ritmo e pelos interesses de nossas vidas, no entanto, nossa atenção é muito dispersa, de tal modo que nossa admiração sobre as formas de nossa expressão não pode deter-se nunca por muito tempo e está geralmente deslocada para além das coisas mesmas que produzimos (isso é especialmente perceptível quando o foco de nosso trabalho é a remuneração, um título, ou qualquer outra coisa que não o próprio trabalho). Por isso, a despeito de que qualquer coisa possa ser arte, e qualquer um, artista, diz-se ainda que arte seja coisa rara: porque embora admiremos muita coisa ao longo de nossos dias, admiramos cada coisa muito pouco, e nem sabemos bem o que andamos produzindo por aí. Nossa admiração fragmentada, faz poucas coisas admiráveis. O artista que se assume, por sua vez, se faz coisas admiráveis é porque admira por muito tempo a própria vocação de fazer arte, o que geralmente lhe parece um imperativo incontornável, mesmo quando arte não é mais que uma noção obscura. No fim, a distinção do artista talvez não seja ideia tão descabida. Mesmo agora que minha vocação inicial, o desenho, esteja um tanto deixada de lado, o foco inicial se mantém (o corpo, e no corpo, a vida, creio), e, como vemos, o foco é o que revela a potência de distinção do artista: o resto é produção em conformidade com aquilo que se admira. Que outra coisa quer quem canta, além de fazer com que a condição real de sua voz coincida com o ideal que ele(a) mesmo(a) dela possui? Talvez esse não seja bem o tipo de distinção que as pessoas esperam reconhecer em artistas, mas especialmente após Duchamp, está tudo bem se elas se frustram. A maior distinção de qualquer artista tem sempre como pano de fundo a mais absoluta indistinção. E se agora o desígnio já não me causa desconforto, é que sei que meu leitor também é artista, bom ou mau, com o que quer que produza.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

quarta-feira, 18 de julho de 2012

prazer para mudar o mundo, ou da política dos prazeres


"balela"

Há algum tempo circulou pela internet um vídeo em que uma jornalista demonstrava-se indignada com o carnaval. Segundo sua análise, a 'folia' seria profundamente condenável em condições sociais tais como as nossas. Pela profusão que obteve na internet, no entanto, sua fala parecia verbalizar algo como um peso na consciência de muita gente: algo que muitos pensam, mas poucos tinham coragem de dizer, como apontava um comentário. Longe de ser um caso isolado, vídeos e textos aparecem a todo instante revelando que, para muito além do carnaval, ronda ao redor de toda a produção da chamada "indústria cultural" um clima generalizado de suspeita. Há, nesse contexto, espaço para prazer legítimo, sem culpa ou suspeita? 
                                  o corpo e o sexo à serviço da marca. Discursos das cores das peles, e das formas espetaculares dos corpos; prazeres contraditórios.

Entre o moralismo chato que se pretende responsável, de um lado, e a inocência inconsequente do seu oposto hedonista, do outro (ambos explorados economicamente das mais diversas formas), vemos se desenvolvendo por toda parte uma série de fenômenos sociais mais ou menos graves. A banalização do desenvolvimento de quadros psicopatológicos, como a depressão, por exemplo, nos fala da perda do sentimento de prazer e da sua substituição pelo sentimento de culpa. Seria uma hipótese demasiadamente dramática considerar que nossa sociedade se desenvolveu de tal forma que o prazer legítimo deixou de ser, para muitos, uma possibilidade?


Se é verdade que exista, o sentimento de culpa não deve dar-se tanto por algo como a noção religiosa de pecado como ocorria até pouco tempo, mas, como sugere a jornalista, pelo mínimo sentimento de responsabilidade moral ou, para por de outra forma, pelo sentimento de que ignoramos uma ética conduzindo nossas vidas normalmente num contexto social, político e econômico tal como o nosso. Enquanto alguns evidenciam o próprio mal-estar social quando optam por sair às ruas gritando por ideais como liberdade e justiça, ou, de modo mais indireto, quando se debruçam sobre noções afins na rotina de seus trabalhos nas mais diversas áreas, a maioria de nós, resignados em bolhas sociais e completamente cegos socialmente, se contenta com formas medíocres de prazer.


É provável que o homem nunca tenha sido, em toda a história de sua evolução, tão solitário quanto na contemporaneidade. É possivelmente o que justifica o interesse quase urgente de estabelecer vínculos pessoais em grande quantidade, sejam eles parceiros sexuais ou amigos do facebook. Nestes casos, o nível de relação que se estabelece tende a ser muito pouco aprofundado, pela própria ligeireza dos contatos. O prazer desloca-se muito intensamente, de todo modo, para o âmbito privado e supostamente protegido das relações sociais mais pessoais e de certo modo culmina, a meu ver, nas relações conjugais. Inconscientemente consideradas espécies de refúgio da conturbada, mas monótona, vida pública, onde todos os prazeres parecem suspeitos, relacionamentos a dois mais duradouros e convencionais passam a ser desejados como redutos definitivos de prazer - prazer passional e incondicional -, o que comprova possivelmente o conservadorismo romântico vigoroso de nossa sociedade moderna. Este ideal de relacionamento é, aliás, explorado pela indústria cultural, em grande medida responsável por alimentar imaginários infantilizados de relações conjugais. Mas, quando o imperativo de uma relação torna-se tão assumidamente o prazer, conflitos e crises, quando suportados, o são com muito maiores dificuldades. Frustração e desapontamento tornam-se cada vez mais rotineiros. Além disso, a concentração tão restrita da dimensão de prazer a relacionamentos conjugais se relaciona ao desenvolvimento de comportamentos neuróticos e obsessivos cada vez mais frequentes. 

O prazer legítimo não deve, porém, ser buscado de modo tão restrito na esfera privada, nem deve, de modo mais particular, estar tão condicionado a relacionamentos conjugais. Para agir no sentido de ampliar a esfera do prazer em direção a âmbitos muito além dos privados, é preciso em primeiro lugar investigar possibilidades de desvincular a conexão entre prazer e mal-estar social

Perguntar-se hoje pela ética do prazer é questionar-se a respeito das possibilidades subversivas do prazer; no sentido de que prazeres socialmente bem estabelecidos, como aquele de possuir um carro, por exemplo, são prazeres explorados e mesmo estimulados para a manutenção da ordem, e por isso mesmo, acabam sendo falsos prazeres. Prazeres legítimos, por não serem previstos, possuem discursos que não endossam discursos normativos, e são legítimos justamente por isso, porque os devoram. O prazer de caminhar pela rua durante a noite, por exemplo, é engolido quando as pessoas por quem passo sentem medo de mim, ou quando me assaltam e me apontam pra cabeça uma arma, ou quando preciso desviar de mendigos.

Que prazeres, ao invés de serem engolidos, engolem?

Enquanto o medo, a culpa e o mal estar destroem a legitimidade dos prazeres, prazeres imprevistos ampliam a esfera da liberdade, propondo alternativas aos valores dominantes; obviamente aqueles que encarnam os valores dominantes, vendo-se ameaçados, podem reagir agressivamente, mas se estivermos bem seguros de nossos prazeres, poderemos ao menos argumentar. Se a polícia surgir para nos calar, talvez seja um "prazer legítimo" pedir que sumam. Quando o prazer se torna combustível da indústria cultural, é praticamente impossível pensar em prazer que constitua um ponto fora da linha. A homossexualidade já pôde ser pensada nessa chave, mas agora que é prevista e explorada, não mais... 



...

Penso nas propostas estéticas da Voodoo Hop (SP), da Companhia Silenciosa (Curitiba); da Selvática Ações Artísticas (Curitiba) e; num âmbito não tão distinto assim, da Marcha das Vadias (Curitiba). São movimentações culturais que trazem a questão do prazer de volta à cena pública, com discursos certamente marginais aos hegemônicos. A 'folia' proposta por esses grupos enriquece todo o campo da produção estética de nossa cultura com discursos muito mais desejáveis do que outras folias, porque mais diversos.



"Acorda! Acorda! tá na hora de você ressuscitar!" (psychotria)



“enquanto o conhecimento técnico expande o horizonte do pensamento e da atividade do homem, sua autonomia como um indivíduo, sua habilidade para resistir ao aparato crescente da manipulação de massa, seu poder de imaginação, seu julgamento independente parece ser reduzido”. “Nosso mundo parece abandonado a um conflito de interesses” 


Horkheimer 



Nossos tempos são provavelmente os mais dramaticamente complexos e desafiantes da história. A vida na antiguidade grega, pra considerar um exemplo distante, seguia um modelo bastante estático e, consequentemente, impunha a cada cidadão muito menos desafios. A atinguidade não admitia a possibilidade de oposição entre indivíduo e coletividade, ou entre indivíduo e seu destino; na realidade, nem sequer existia a noção de indivíduo pra que a ideia de oposição a qualquer coisa pudesse ser considerada. Os papéis e as funções eram determinados desde o nascimento de cada um, não havendo a possibilidade de mobilidade social. O que não significa que as vidas eram particularmente mais fáceis, mas eram certamente, e obrigatoriamente, mais conformadas já que o número de possibilidades e caminhos a seguir, eram muito restritos. Liberdade era coisa reservada aos homens, enquanto aos escravos, às mulheres e às crianças, cabia apenas a obediência. Pode até ser que as vidas fossem por isso difíceis, mas não eram complexas. Em outros tempos, em especial durante o longo período que chamamos Idade Média, a religião cumpriu bem o papel de fornecer uma narrativa mestra, condutora da vida humana por meio de princípios pretensamente universais que regulavam o comportamento dos homens e das mulheres. Embora noções como as de interioridade e de vontade já tivessem antes disso despontado nos escritos de Santo Agostinho, aspirações pessoais não possuíam ainda o peso que viriam a ter mais tarde, com o desenvolvimento da classe burguesa, quando surge a possibilidade de ascensão social.

É interessante observar que a obra de William Shakespeare seja por muitos autores considerada o marco principal do início da modernidade justamente pela centralidade de elementos como dramas psicológicos e dilemas pessoais. Com a ideia de autonomia do sujeito burguês, a religião perde gradativamente seu lugar e, sem narrativas e verdades universais, as coordenadas das vidas, mais livres, tornam-se mais diversas, e confusas, tal como demonstram as personagens do escritor. A sociedade estratifica-se e nosso modo de vida dinamiza-se. Pelo excesso de estímulos, desconcertante e desorientador, a liberdade de que dispomos é segundo a definição de alguns autores, uma "liberdade precária”. As sociedades contemporâneas incitam à ação e estimulam processos de individualização mais ou menos variados. A partir de um leque de possibilidades institucionalmente dadas, somos compelidos a sermos nós mesmos, a nos realizarmos; coisa que em outros tempos não faria qualquer sentido.

Tomamos então decisões e exercemos em níveis diversos nossa capacidade crítica (ninguém é totalmente determinável, como certa corrente de pensamento já propôs) mas, talvez para eximir a nós mesmos de responsabilidades excessivas, ou por redução mesmo de nossa autonomia e de nossos poderes de imaginação, como sugere Horkheimer na citação que abre este texto, costumamos permitir que nossa vida seja conduzida aqui e ali pela força dos estímulos mais imediatos, pelos hábitos, pelas rotinas, pelos costumes, pelas tendências e pelos discursos hegemônicos. As formas de vida que se desenham quando se deixa orientar por estes fluxos normativos permitem, se tivermos sucesso, termos supridas nossas necessidades mais básicas, tais como alimentação, moradia e educação, não muito mais que isso. O tempo da vida da maioria das pessoas é assim despendido na tentativa, muitas vezes desumana, de assegurar o mínimo necessário para manter a vida. O mais irônico, talvez, é que os maiores interessados em manter a ordem das coisas nem sempre são os de maiores posses (materiais e intelectuais), mas nós mesmos, a chamada classe média de trabalhadores, se é que faz algum sentido falar em classes em nossos dias. Não estando nem lá, nem cá, acreditamos que, com esforço, poderemos melhorar nossas vidas, subir talvez alguns degraus na absurda estrutura de hierarquias sociais que nossos sistema formou e que "compreendemos" como sendo perfeitamente natural. E se conseguimos, subimos bem satisfeitos estes degraus porque o fazemos "por merecimento" (penso no “funcionário do mês” e nas honrarias tradicionalmente concedidas aos que melhor cumprem com suas funções). O que há é cegueira social. Banalização da miséria alheia e da nossa própria mediocridade cultural. Pra que nossa cultura deixe de ser medíocre é preciso que as vidas possam, no espaço de tempo que possuem, dedicar-se a conquista de mais do que o básico; pra que possam compor formas mais ricas e diversas. Pra isso é necessário que a desigualdade social diminua, o que não deve ser tão simples, mas também não pode ser tão complicado.

Não se trata de sugerir um retorno a formas comunitárias de organização social tais como eram a grega e a indígena; o individualismo não é um mal que possa ou deva ser abolido, somos mesmo todos muito distintos e nos reconhecemos através destas distinções. No entanto, da maneira como se desenvolveu socialmente, o individualismo se revelou uma tendência auto-destrutiva. Me parece incrível que o período em que nosso planeta abriga o maior número de seres humanos seja também o período de maior distanciamento entre os homens. É decerto natural quando tanto esforço é investido no desenvolvimento de vidas privadas, e no sentido de promover a distinção através, por exemplo, de formações cada vez mais especializadas. Intimamente podemos até nos achar bastante ricos, mas, enquanto geramos bolhas dentro de bolhas (e nos habituamos comodamente a elas com nossos carros e casas), a esfera pública "lá fora" atrofia, sem grandes interesses. Pra alguma coisa mudar é necessário sairmos de nós mesmos. Temos gostos e ideais comuns a cultivar, e nossos relacionamentos podem ser mais próximos, mais ricos e profundos (menos pobres, superficiais e distantes) do que o habitual. Pra que isso ocorra é necessário primeiramente identificar quais são nossos interesses comuns pra então começar a trabalhar no sentido de estabelecer pontes a partir do interior de nossas vidas privadas. É, em parte, o que este blog tenta fazer.

O horizonte é sempre utópico, mas o sentido de nossa marcha cotidiana é real. Não somos totalmente livres, e nunca seremos, mas também não somos totalmente determinados, vítimas da história. As condições de nossas vidas podem ser alteradas se optarmos por modificar a estética de nossa existência.