quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Considerações muito gerais sobre a loucura e os limites da normalidade

Neste texto falaremos de loucura e de normalidade como atribuições mais ou menos genéricas a certos tipos de comportamento. Não falaremos do louco, nem do sujeito normal, portanto, pois isto seria como fixar e julgar compreender o todo de um ser qualquer por meros recortes. Nosso objetivo é questionar em que medida a normalidade é realmente desejável, e investigar o que podem ser atos de loucura.

I.

Em suas atribuições mais comuns, a loucura é compreendida como ausência de lucidez e clareza, como insanidade, e portanto, como ausência de saúde - no caso, saúde mental.

A normalidade, por oposição, sugere as condições propícias para a lucidez, para a clareza, para a sanidade, e, portanto, para a saúde.

A loucura descreve o comportamento confuso, obscuro, e débil em relação ao que seria considerado normal em uma dada situação. A aparente ausência de nexo entre os sentidos que a loucura traz à tona não permite muitas vezes o reconhecimento de qualquer espécie de ordem. Ela coloca em questão, com isso, mais do que o estado psíquico de alguém, a própria capacidade de compreensão daquele que avalia e faz o diagnóstico. A loucura revela uma espécie de desconexão em relação à concepção mais habitual de realidade num determinado caso, e é geralmente uma atribuição direcionada a alguém que se revela incapaz, ou inapto a integrar o meio que habita de maneira construtiva. Por vezes, com efeito, a loucura desestabiliza e desintegra a própria ideia de normalidade, trazendo à tona o caótico, o descontínuo, e o desordenado.

A normalidade, por outro lado, é adjetivação que se atribui ao comportamento que se encontra adequado à norma. Ela revela adequação à lógica de seu próprio meio. É, por assim dizer, o comportamento esperado. Comportamento que está de acordo com as ordens estabelecidas, e que assim, não parece representar qualquer ameaça ou risco.

Se consideramos, porém, que a saúde interessa apenas na medida em que permite desenvolver e usufruir nossa potência de vida, e neste processo, enquanto elemento capaz de proporcionar prazer, podemos considerar que o comportamento normal, de acordo com o esperado, está muitas vezes distante das condições que permitem saúde. Com efeito, o mais comum em nossa época é que o prazer se dê nos desvios das normas, quando assumimos riscos, e escapamos ao tédio do comportamento previsível. Assumindo que desejamos muitas vezes permanecer nas margens, como exceções às regras, nos aproximamos então do que seria a loucura para, paradoxalmente, manter a sanidade.

Afinal, se levamos em conta as contradições, as guerras, todo o sofrimento e miséria relacionados à ordem social, em que medida a lucidez pode ser considerada uma característica de quem se adequa às normas¿ Que clareza pode haver naquele que automatiza seu próprio comportamento, mecânico, condicionado, e inconsciente - pois todas estas coisas envolvem o comportamento normativo -, atuando como uma espécie de engrenagem a favor de instituições responsáveis pelo que, de fato, pela própria alienação necessária para a manutenção de todo esse sistema, mal pode ser conhecido¿

Descobrir a possibilidade de prazer e de saúde nos desvios é um primeiro passo para fazer as pazes com o caos em nós mesmos, pois a partir daí podemos lançar luzes sobre as nossas sombras - as partes de nós que são causa de problemas quando escapamos às normas, partes que geralmente repreendemos-, percebendo-as de outras formas. Podemos compreender a partir daí a potência revolucionária, espiritualmente libertadora, do desajuste, ainda que isso acarrete em desobediência - comportamentos não previsíveis: uma espécie de "loucura" bem apropriada.

II.

Poucos, porém, são os que assumem seus desajustes com prazer, e experimentam anormalidades com lucidez. Na maior parte dos casos, a anormalidade é causa mais ou menos imediata de mal-estar, sofrimento e doenças diversas. Por esta razão, o sentimento de inadequação e desajuste costuma ser combatido com terapias e medicamentos de diversos tipos, e também com tentativas de ajuste a nível de aparência, seja em academias de musculação, em lojas de produtos e acessórios, ou em clínicas cirúrgicas. Tudo ocorre como se as norma sociais, por seus sentidos conhecidos e supostamente seguros, indicasse uma espécie de ideal que tivesse de ser de algum modo correspondido, e como se o louco hipotético fosse assim identificado, estigmatizado, por ver-se daí em certas ocasiões desligado: ele não repreende impulsos e vontades que, segundo as normas, deveria.

Infinitamente mais arriscada e incerta do que a normalidade, a loucura pode nos parecer muito mais excitante do que a normalidade, particularmente pela promessa de campos imprevisíveis a desbravar. Se desejamos reivindicar estas linhas de conduta consideradas “anormais”, as quais estariam de acordo com a vontades inadequadas de sujeitos “desajustados”, precisamos verificar as condições mediante as quais elas seriam possíveis. Assim podemos desintegrar a própria ideia de normalidade que ainda vigora - talvez de modo já não tão unitário, é verdade, mas ainda insuficientemente diverso.

Para isso, devemos nos assegurar dos sentidos de nossas loucuras individuais. Faremos isso reconhecendo nelas seu caráter político particular, e reivindicando, a partir daí, o direito à inadequação, ao desajuste, e à singularidade, enfim. Isto significa investir na possibilidade de produção de diferenças, não pelas diferenças apenas, mas pela necessidade de transformação via diversificação de um meio que se encontra, por diversos fatores, homogeneizado. Pois enquanto a diversificação é um produto da afirmação de potências de vida singulares, a homogeneização é fruto da potência de morte.

III.

A loucura sugere distância em relação à normalidade. A esta distância é possível vislumbrar, geralmente com algum temor, a possibilidade de encarnar, fazer existir em definitivo, outra coisa - algo diferente da norma - ainda que não se saiba bem ao certo o que esta outra coisa seria. Pois afinal, a loucura, como já dissemos, nem sempre tem sua ordem propriamente identificada, e geralmente se apresenta, precisamente, como sem ordem, como confusão. Embora toda loucura dê pistas de seus ordenamentos mais gerais, principalmente se consideramos o histórico do sujeito em questão, poucas são as pessoas que se dispõe a colocar estes ordenamentos em relação às ordens mais habituais, aquelas relativas às normas, para que então as eventuais loucuras possam ser mais propriamente compreendidas. Este tipo de articulação, afinal, requer alguma lucidez – capacidade de contato suficientemente íntimo para estabelecer relações dialógicas entre norma e loucura.

Ao considerar a possibilidade de romper normas propondo ordens diversas das mais habituais, tenho em mente a produção de espaços heterotópicos - “espécies de utopias realizáveis”, como propõe Foucault. Penso, basicamente, no desejo poético-filosófico de tomar a vida como obra de arte, como queria Nietzsche, por exemplo. Não ignoro, porém, que Hitler e o holocausto podem também ser compreendidos nessa chave. Campos de concentração, como os de Auschwitz, podem certamente ser considerados espaços heterotópicos do tipo que, para gente como o conhecido ditador, aproximariam a vida (a sua e a das pessoas consideradas de raça ariana) do estado da arte. Hoje, em retrospecto, sua “loucura”, pela forma como rompeu com o que eram os discursos normativos de sua época, não precisa ser sublinhada. O ditador, porém, deixou amplos registros de sua capacidade de dialogar com as condições “normais” de seu período e de argumentar a favor do projeto de transformação que propôs; documentos que nos servem como prova de sua perversa lucidez. É claro que suas ideias traduzem aspectos do Espírito daquele período, mas isso não nos deve impedir de reconhecer o poder de persuasão de seu discurso, particularmente pela forma como foi assimilado pelos alemães à época. O grande medo da loucura, o sentimento de perigo em relação à diferença, assim como a tendência à segurança da normalidade (os códigos a que estamos mais habituados), encontram sua justificativa em exemplos como este. Pois na medida em que a loucura traz consigo a possibilidade de outras ordens, ela guarda a possibilidade de desestabilização da normalidade, o que representa um risco. Daí podemos pensar problemas como a xenofobía, e também a conotação negativa do próprio termo "loucura" - afinal, indicativo de um quadro patológico e de uma postura defensiva em relação ao que é assim nomeado. Pois se bem de perto se revelam as razões particulares do que a princípio pode nos parecer “loucura”, e se assim podemos contemplar nela uma forma muito particular de lucidez, seus sentidos podem nos parecer sedutores a ponto de tornar definitivo o câmbio de perspectivas. A sensação de vertigem que geralmente acompanha o sentimento de saída das linhas da normalidade sugere que, de fato, há um processo de transformação envolvido na possibilidade de acompanhar as direções que ela indica; e se ela indica uma real possibilidade de transformação, quem sabe ao certo onde podemos parar¿ O que nossas eventuais loucuras podem fazer de nós mesmos?

O medo da loucura revela o medo de cair num abismo por um salto da razão no desconhecido. Mas é também possível pensar que já estamos em abismos, e o que nos parece loucura é, na realidade, a própria salvação. O medo, de qualquer modo, é o medo do desconhecido; o medo do novo; o medo de que nos preserva o recuo que nos mantém em seguro acordo com a “normalidade”, afinal, conservadora. Se nos cansamos, porém, do mesmo, e estamos decididos a encorajar a identificação de outras ordens, é prudente questionar, para não repetirmos crimes como aqueles de outras épocas, que outras ordens serão estas¿
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Instruções:
Facultar a possibilidade de identificação de outras ordens, trabalhando na produção de espaços autônomos onde o caos possa ser experimentado de outras formas; para que outras ordens sejam propostas. Assegurar que estes espaços sejam compreendidos como espaços de arte e ter com clareza a noção da arte como "experiência de suspensão de opostos" (ver o Espírito na arte e na filosofia), para que então a diferença possa se desenvolver livremente, sem qualquer forma de oposição e, por conseguinte, autoritarismo.

Observações:

A linguagem, compreendida como o conjunto de formas de que nos utilizamos para nos fazer entender uns aos outros, se estabelece de acordo com ordens relativamente específicas. O sentimento de inadequação em relação à linguagem no trabalho de comunicação de nossas ideias é, por isso, bastante comum: ordens mais verdadeiramente originais em relação às mais habituais requerem outras formas de serem expressas; a elaboração destas formas faz a arte.

Em parte é possível pensar na arte como “cura” para males como a esquizofrenia, mas isso é pobre em relação ao que esse paralelo nos permite conceber. Nós não desejamos o silenciamento de um fenômeno qualquer que ocasione distanciamento em relação as normas, mas, pelo contrário, o desenvolvimento deste fenômeno para que a partir daí outras ordens possam ser identificadas – ordens mais livres, mais diversas e mais de acordo com potências de vida singulares.

Historicamente, a arte é o lugar onde se concentra as realizações mais apreciáveis de indivíduos desajustados em relação às ordens ditas normais. Isso é tanto mais verdadeiro quando se percebe quão pouco admirável torna-se a normalidade com o desenvolvimento da burguesia e do sistema capitalista durante a modernidade, e quão confortável foi para ela a invenção de um campo autônomo para abrigar experiências admiráveis. Felizmente, a arte não permaneceu aí por muito tempo.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A primazia do sensível e a experiência do presente contínuo

A percepção do que consideramos ser a realidade depende de nossa capacidade reflexiva de processar estímulos sensíveis. Como este processamento ocorre na relação contínua que estabelecemos com as coisas do mundo através de nossos sentidos e sistemas receptores, podemos considerar que tudo aquilo que percebemos existir no mundo sensível existe, enquanto percebemos, em nossa sensibilidade. Se a nossa sensibilidade se estende ao mundo através de nossos sentidos reflexivos e a “realidade” depende assim de nosso contato direto com as coisas do mundo, as coisas que julgamos existir num dado momento fora do alcance de nossa percepção sensível são “irrealidades” - tais como memórias, crenças, imaginações, abstrações e suposições –, algumas das quais se manifestam na realidade de nossa sensibilidade sob a forma de sentimentos e sensações que nem sempre reconhecemos com clareza. Mas enquanto alguns destes “irreais” podem parecer obscuros ou incertos, outros nos parecem lógicos e confiáveis, de modo que é possível dizer que toda possibilidade de conhecimento depende dessas nossas “irrealidades” particulares, algumas das quais estatisticamente comprovadas dentro dos limites de nossa experiência sensível. A fonte última deste conhecimento é a percepção, pois o plano sensível é o único âmbito comum de nossa existência, e só por ele toda nossa “irrealidade” se integra ao que compreendemos como o mundo real, embora a ideia de um “mundo real” para além da nossa percepção individual seja já uma abstração e, nesse sentido, um “irreal”. Esta possibilidade de integração de “irreais” a partir do sensível nos permite generalizações, sistematizações, compreensões, e, no limite, o desenvolvimento de coisas como a linguagem e a ciência, por exemplo, e não há nada que se nos apresente aos sentidos sem que conectemos a “irreais” pretendendo compreender os objetos de nossa percepção. Isto, porém, ocorre numa esfera muito limitada, e nunca de modo absoluto, pois a compreensão total dos objetos de nossa percepção será sempre um “irreal”, algo como uma mera ideia, pois ao ver um lado do objeto, perco o outro; ao me distanciar para observar o todo telescópico, perco a proximidade microscópica; e mesmo que acreditasse que o esgotamento dos modos de percepção de um objeto fosse possível, ele dependeria de tempos distintos, e o tempo é já uma abstração, e portanto um “irreal”. Aquilo que existe é sempre pontual e infinitamente extensivo em sua parcialidade – é presente contínuo. Seríamos no entanto como bebês que assistem passíveis à gênese assustadora do mundo a cada instante, não fosse essa nossa capacidade de efetuar sínteses a partir da parcialidade de nossas experiências e a partir delas julgar que conhecemos os objetos de nossa percepção. Com efeito, nos surpreendemos muito pouco depois de adultos, pois nossas vidas se desenvolvem de tal forma padronizada que frequentemente julgamos que as coisas se repetem e que por se repetirem, já conhecemos todas as coisas. Nos valemos convictos de “irreais” para instrumentalizar toda a existência então normalizada, sem que no entanto a percebamos em sua realidade originária. Somos treinados para fazer cálculos e temos toda a sensibilidade engessada.


Quando se fala das cisões ou dissociações da modernidade entre coisas como matéria e espírito, ou corpo e mente, razão e sensibilidade, sujeito e objeto -, isso não é nada de muito abstrato. Basta considerar os momentos em que o foco de nossa atenção se distancia e desliga dos dados de nossa percepção, e imerge nos “irreais” obscuros de nossa imaginação ou de nossa memória abstraente. Antes, basta considerar a desconexão entre o lugar do corpo-sujeito e o lugar do pensamento-objeto na própria diferenciação proposta aqui entre um “irreal” mental, e um real sensível. Ora, se fosse possível partir do problema já resolvido, ele já não seria um problema. Assim, ao mesmo tempo em que o diagnóstico afirma a dissociação, ele o reconhece - o que se expressa nas aspas - pretendendo constituir um movimento na direção de sua superação.

É evidente que nossa capacidade de abstração não é negativa. Não se trata de recomendar sua supressão na direção do sensível, como se por certo desencantamento em relação à modernidade fosse possível uma espécie de retorno à uma condição primitiva perdida, e muitas vezes idealizada, ou como se os pensamentos tivessem de se conformar aos dados sensíveis do presente, o que muitas vezes se procura à base médica. Sem certa capacidade de abstração pessoal, mesmo a escrita e a leitura seriam impossíveis, não teríamos repertórios que nos permitiriam a identificação das letras, nem meios para articular as palavras e os sentidos que vem antes aos que vem depois. Esta capacidade de construir significados e sentidos a partir dos “irreais” fundados em nossa sensibilidade é o que nos difere dos demais animais, e o que está na origem de fenômenos modernos tão distintos quanto o individualismo, a ciência, e a arte - algo que portanto não pode ser simplesmente suspenso ou ignorado. O cultivo de nossa “irrealidade” pessoal pode ser admitido em contrariedade às dissociações e cisões da modernidade, pois ao invés de conduzir à perda de contato com o mundo sensível, ele, inversamente, o constitui: antes então da supressão de nossa “irrealidade”, a busca da coincidência no mundo sensível. Isto ocorre quando as qualidades reais do nosso corpo ativo nos levam a descobrir os correspondentes imediatos de nossas “irrealidades” no mundo sensível, de modo que elas cessam de existir como “irrealidades”, e fundem-se ao real sensível. Isso de certo modo ocorre aqui, pois se penso essas coisas, escrevo para abstrair colado ao mundo sensível. A realidade do pensamento se expressa na qualidade sensível da escrita ou da fala, assim como o sofrimento se torna dor e lágrima, e a música, na dança, movimento. É verdade que, talvez, por não ser tão bom escritor, há alguma distância entre o pensamento e a escrita, mas nos momentos de maior inspiração ambas as coisas coincidem, o pensamento escreve, a escrita é pensante, e toda minha “irrealidade” se realiza. Nessa coincidência, a fala falante, e não falada, transforma aquilo que era mera potência na imaginação ou no pensamento em coisa real, a ponto de ser algo como um pensamento audível. Esse processo envolve assim certa transparência, no sentido de que o “irreal” transborda sem reservas no real sensível. Ora, é bonito ver num trabalho de arte a realização de um irreal, e é muito mais do que apenas bonito se ele permite a realização de nossa irrealidade.

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Embora seja verdade que nenhum estímulo seja verdadeiramente o mesmo, sentimos ser evidente que nem todo estímulo precisa ser verificado como se fosse totalmente novo. Não precisamos sempre nos aproximar do fogo, por exemplo, para saber que ele queima. É, portanto, a partir do que sentimos ser, por nossa própria experiência, seguro e conhecido que nos conformamos ao que nos parece a realidade de nossas vidas, e a partir daí operamos. Por isso atribuímos à nossa percepção da realidade o caráter de verdade, embora muito constantemente nos enganemos. Quando por exemplo compreendemos um estímulo de uma forma específica sem achar necessário buscar formas mais rigorosas de verificação, e erramos: do instante em que penso ter ouvido a voz de minha mãe, até o instante em que descubro na realidade não tratar-se dela, o que ocorre é uma ruptura com a ideia de realidade que compreendo ser verdadeira pela experiência dos meus sentidos. Tão logo nos sentimos enganados ocorre a substituição de uma idéia de realidade por outra, esta sim acreditada como verdadeira: não era minha mãe.

A atribuição de valor de verdade à realidade precisa ser suspensa pra que seu caráter plástico seja evidenciado pela própria dimensão do possível. Claro que todo o possível da realidade jamais poderá ser totalmente apreendido pelo próprio movimento constante e nunca repetido da existência, mas é importante, de todo modo, estar sempre aberto a sua consideração. Não é que devamos passar a buscar comprovação de que o fogo queima a cada vez que nos for dada à intuição, pela sensibilidade, a existência do fogo. Trata-se antes de manter em suspenso o que se pensa saber pela experiência: antes de deduzir à distância segura a queimadura, sentir o calor. Manter a consciência desperta e receptiva envolve uma suspensão do supostamente conhecido, e, portanto, dos preconceitos, dos hábitos, dos costumes, e da cultura de modo geral.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

quinta-feira, 27 de junho de 2013

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E agora, pra onde vamos com tão múltiplos interesses? O sentido é sempre mais certo quando as restrições são evidentes. Quando não podemos nos deslocar, ou quando somos censurados, por exemplo. A conquista da liberdade se torna logo uma razão para brigar e viver. Quanto menor a liberdade, mais evidente é esta razão. Foi assim que as pessoas se movimentaram contra a Ditadura, e saíram às ruas pelas Diretas já, e foi assim que estas manifestações de agora tomaram as proporções que tomaram.

Esta é a ambigüidade da falta de liberdade: se de um lado ela causa sofrimento, pq quanto menor a liberdade, mais nos parece indigna nossa condição, de outro, a falta de liberdade preenche a vida com motivações relacionadas ao desejo de superar esta condição, conquistando pela liberdade a dignidade de ser conforme ao desejo. Chego a pensar que nosso interesse pela música e pela arte dos anos 60 e 70 se deve basicamente, e ironicamente, ao clima de guerra e de repressão desse período. Há algo como uma necessidade de compensação inerente à própria vida que exige que, pra se manter em mínimo equilíbrio, em época de coisa muito escancaradamente ruim, se faça coisa muito boa – ação e reação, decerto. Assim, tanto melhor se esta falta de liberdade for um sentimento comum, como o desejo de superá-la, porque aí a motivação que nos preenche é também comum, e nos sentimos maiores, mais fortes para enfrentar o que nos priva a liberdade. Foi o que para muitos ocorreu no início destas manifestações. Era como se estivéssemos “fazendo história”, como cheguei a ouvir e ler por aqui. É uma pena se isso indica que cotidianamente sentimos não fazer história alguma, pq por certo fazemos...decerto as razões de indignação são muito pulverizadas, aqui umas, ali outras, e assim elas seguem, como se não tivessem relação umas com as outras, fracas demais pra romperem com as ordens a q nos submetemos, descontentes e inertes, diariamente.

Ia dizendo que as razões de nossa vida se tornam mais evidentes quanto menor nossa liberdade, e é o desejo de ampliá-la que pode, por exemplo, unir pessoas tanto no trabalho, quanto no crime, ou no ativismo político: muda em cada caso a forma, mas mantém-se o desejo comum de ampliar a liberdade. O ponto é que, como sabemos que privações como a fome nos causam sofrimento, tendemos a ser insaciáveis em nosso desejo de liberdade, e desejamos sempre mais: mais opções do que comer, de onde morar, de como se vestir, pra onde ir, com quem se casar...

A princípio, nosso impulso humano de sobrevivência nos impele a agir de modo individualista. A liberdade que nos interessa inicialmente é a nossa. Mas há, pelo desenvolvimento de nossa capacidade de afeto, a possibilidade de identificação entre nós e outros, de modo que podemos ampliar a esfera de nosso desejo por liberdade para incluir aqueles que consideramos iguais. É na diferença desse sentimento de igualdade, creio, que podem ser identificados alguns posicionamentos políticos conflitantes (e é onde a direita conservadora e o fascismo se aproximam). Iguais são apenas aqueles mais próximos de nós? Nossa família? Ou aqueles que possuem nossa cor de pele? Nosso sexo? Nossa nacionalidade? Ou de modo mais abrangente, iguais são todos os seres humanos, cada qual com seu desejo de liberdade particular?

Muita gente revela achar contraditório que alguns intelectuais de esquerda se preocupem com a situação da classe operária, ou que classes privilegiadas se preocupem com a situação social das classes mais baixas. Mas isto é pressupor um sentido de igualdade muito limitado. Se esquecermos por um instante a divisão de classes e partirmos do pressuposto de que todos desejamos e lutamos por nossa liberdade, então o sentido do empenho de uma pessoa revela aquilo com o que ela individualmente se identifica – “nossa liberdade” não precisa se restringir à liberdade de uma classe, pode ser a liberdade da humanidade, se quisermos. Não se trata, enfim, de hipocrisia, mas de usar a distinção, que já existe, no sentido de diminuí-la. Não é porque ela é dada que precisamos nos conformar a ela, e afirmá-la indefinidamente.

Claro que é problemático nos identificarmos de modo tão generalizado com o outro, sendo este outro invariavelmente representado por idéias abstratas como as de classe, ou mesmo por entidades genéricas como "a humanidade”. Por isso, creio, Foucault destacava, ao invés disso, a questão do “cuidado de si”. O que não é de modo algum egoísta ou mesmo individualista já que, como ele dizia, “é cuidando de mim que cuido do outro”. As coisas se dão em relação, afinal.

Se sabemos que, na raiz, nosso desejo de liberdade é comum, como admitir o choque violento e não acidental entre duas ou mais pessoas? Em que situações extremas é verdadeiramente justificado o enfrentamento concreto e violento entre pessoas ou grupos? Outro dia pensei que devia tratar-se de um tipo de impulso instintivo e pouco consciente, puro extravasamento, pq a violência faz parte dos instintos humanos mais básicos. Mas se é assim, decerto é necessário montar mais ringues, onde estas questões políticas referentes à negociação dos direitos de liberdade de cada um podem ser suspensas, de acordo com as regras de algo como um jogo. Pq, de fato, talvez o próprio sucesso de filmes de carnificina e de jogos de vídeo-game e de computador em que as pessoas matam umas às outras indique algo como um instinto sanguinário que não tem encontrado muito espaço na pacata rotina dos dias das pessoas. O que impressiona mesmo é verificar que essa liberação não é sempre tão inconsciente ou impulsiva, mas fruto de convicção extrema. Aí se percebe bem que não é outra coisa que não arrogância o que leva a crer na superioridade da idéia de liberdade de um em relação a idéia de outro. Não é justamente deixar de reconhecer o outro como igual? Digo isso pq tenho mesmo dificuldade de entender que, justo qndo a polícia deixa a manifestação em paz, as pessoas começam a se degladiar entre si! É realmente bizarro que a gente possa ser tão estúpido. A gente vai brigar entre a gente? Mesmo? O problema não era a repressão da polícia? Agora a gente vai reprimir um ao outro? 


Decerto é utópico achar que pelo simples desejo comum de liberdade pode haver concordância entre todas as partes, ou que conflitos de interesses podem ocorrer de forma mais compreensiva e menos agressiva. De todo modo, o que não costuma ser dito é que a conquista gradativa da liberdade também costuma conduzir ao sofrimento. Isso porque o que fazemos com ela é geralmente usá-la para obter mais liberdade. E o círculo vicioso nos leva para onde? Há uma angústia existencial relacionada à conquista gradativa da liberdade. Não é um sofrimento menos grave do que as privações mais evidentes, como talvez nos pareça. Basta conferir nossos índices de tristeza crônica, depressão e suicídio. Na medida em que aumenta nossa liberdade, aumentam nossas opções, diminuem nossas certezas, se ampliam as incertezas: pra onde vamos? E, afinal, de que necessidades últimas poderemos desejar nos livrar? E as coisas das quais não podemos escapar, como a morte? O que nos livra da morte? A conquista gradativa da liberdade nos revela o modo como ela é na realidade inalcançável. Nada disso é, na realidade, mal da liberdade propriamente dita, mas da forma fantasiosa como acreditamos que ela é possível.

A aplicação de nosso tempo no sentido de vencer limitações indica que o sentido de nossa vida é a conquista da liberdade. Mas isto é o mesmo que depositar o sentido da vida num vazio. Mais propriamente, significa torná-la um meio - para alcançar um fim que nunca chega – pq afinal a liberdade permanece sempre num horizonte utópico. As limitações vão sendo sempre outras, mas elas continuam existindo.

Quando artistas e filósofos falaram de tomar a vida como obra de arte, o que consideravam era a possibilidade de a vida ter fim em si mesma. A “vida” talvez seja abstração muito grande; o que temos é o instante presente, sempre muito único. A vida tem fim em si mesma quando o que fazemos no instante presente não tem interesse em chegar a outra parte senão naquilo que já é. Somos artistas quando isso ocorre, enquanto isso ocorre. Não importa que daí não resulte obra; importa a experiência – tanto melhor se houver obra, como registro da experiência, mas artista é quem vive a experiência, antes do que quem propõe ou distribui obras que talvez a possibilitem. Pq aí, na linha do que dizíamos de Foucault, como tudo se dá em relação, cuidando da própria experiência, a experiência do outro é conseqüência. O ponto é que em alguns momentos de nossa vida, todos somos artistas. É quando os sentidos profundos de nossa ideia transcendente de liberdade se realizam, tornam-se imanentes, sem que muitas vezes a gente se dê conta. São momentos raros, infelizmente.

Há quem ache “perigoso” ou “perverso” isso de desejar a fusão entre arte e vida. Já nem se fala mais tanto nisso em arte. De fato, talvez pareça suspeito já que isso de tomar toda coisa como fim em si pode confundir-se com conformidade, e a gente aprendeu que o certo é desejar progredir, estar insatisfeito com o presente e desejar satisfação em outra parte, em outro tempo; nunca no presente. Mas a gente não percebe que assim a vida apenas passa: é só qndo a vida torna-se fim é que vivemos - qndo ela não é meio para chegar a parte alguma. O que é particularmente difícil imaginar em situações pouco favoráveis. Mas acho que foi uma “aceitação” desse tipo a que estava em jogo quando Jesus ou Sócrates aceitaram morrer. Não é exatamente uma conformidade já que é uma aceitação desobediente, desafiante, porque fiel a si. Alcançar este estado é a meu ver alcançar o estado estético, é realizar a arte na vida, o que talvez seja o mesmo que “iluminar-se”, ou tornar-se sábio. Eu obviamente ainda não estou totalmente lá, não falo como se estivesse, mas pelo menos sei que “lá” não é outra parte que não aqui. Acho que isso já é alguma coisa.

*texto originalmente publicado no facebook.

sábado, 18 de maio de 2013

Esboço da vida e da cultura segundo o modelo quantico

Esquema: A cultura humana constitui algo como um corpo orgânico-energético e dinâmico que se desenvolve ao redor de um núcleo. A maioria das vidas humanas tem a maior parte do tempo ocupado na busca de saciamento de necessidades e interesses muito fundamentais, tais como alimentação e moradia, de modo que na grande maioria dos casos, ela se desenvolve sem grandes chances de distanciamento do núcleo mais básico de nossa cultura; na realidade, é justamente este conglomerado de pessoas, com suas práticas, seus costumes e espaços, que constitui o centro de nossa cultura. Todo o funcionamento da cultura depende da atividade desse núcleo, que está, então, em constante movimento. Aí identificados, estes homens e mulheres possuem mais certezas - porque, pela falta de oportunidade de distanciamento, questionam menos -, e jogam sem menos problemas de acordo com as cartas dadas. Eu e meu leitor, pelo próprio movimento proposto por este texto, estamos entre aquela minoria que possui a oportunidade de se desenvolver um tanto além do núcleo mais básico da cultura. Assim, a desigualdade social é elemento estruturante da cultura, o que não digo pretendendo indicar uma oposição entre alta e baixa cultura, mas sim, nos termos de Foucault, entre heterotopias, nas margens e nas periferias, e discursos hegemônicos e normativos, no centro. De todo modo, nem sempre encontramos em nossas práticas, que exigem geralmente trabalho  mecânico, condições de realizar as eventuais potencialidades descobertas nestes possíveis momentos de distanciamento, de modo que é por algo como uma exigência do sistema já estruturado que permanecemos muito facilmente à margem de nós mesmos. Aí vivemos o conflito entre liberdade e necessidade. Mas enquanto elementos relativos ao núcleo de nossa cultura, tais como a primazia de interesses econômicos sobre quaisquer outros valores e a força de discursos fundamentalistas e intolerantes, nos causam alguma inconformidade e sofrimento, ao mesmo tempo, muitos de nós desejam ajustar-se, muitas vezes com o auxílio de medicamentos e terapias, como se o mal-estar provocado pelo movimento de distanciamento que é próprio do processo de desenvolvimento da consciência pudesse e devesse ser suprimido, como se fosse possível nunca mais retornar às alturas a que um dia se elevou. Outros assumem o desajuste para mover o corpo e alterar a prática, para de fato encarnar os pontos mais distantes do núcleo da cultura e confrontar os discursos hegemônicos, tornando as relações de poder mais justas, ampliando a esfera da liberdade em nossa cultura, e deslocando, no limite, o centro a partir dos quais emanam todos os discursos e toda constituição formal da vida na Terra.

  • Já foi uma crença presente na origem da modernidade que pelo desenvolvimento da cultura uma nova natureza humana poderia ser artificialmente criada - o que talvez no limite se relacione ao desejo de escapar à condição terrena e mesmo à morte (estes outros elementos nucleares e norteadores do modo como vivemos). Na arte, se encontra nesse âmbito a questão da autonomia (quando se admitiu a arte desvinculada dos papéis práticos que cumpria socialmente, como em ritos e cerimônias religiosas, assim como da ideia de copia ou representação da natureza, o que evidenciava, mesmo por uma atenção crescente à técnica e ao estilo, a fé do homem em sua própria capacidade criativa, ou ao menos o reconhecimento de um valor significativo em produções genuinamente humanas), e, de modo mais específico, o posterior desenvolvimento da chamada arte abstrata (ainda que, na esteira do pensamento romântico, as noções de natureza e de Deus fossem muitas vezes reivindicadas no próprio homem), em particular aquela de formas geométricas e cunho racionalista. Desde pelo menos as grandes guerras, no entanto, a pretensão de criar um novo homem rompendo com a ordem natural e orgânica do mundo nos parece falida, embora em muitos campos nossa prática permaneça aí compreendida, em particular em certos ramos da ciência. Nesse sentido, não apenas a arte, marcadamente com a virada concretismo > neoconcretismo, e também com o interesse crescente pela cultura oriental, mas também práticas mais gerais em nossa cultura tais como o  vegetarianismo, a homeopatia, a acupuntura, o indigenismo (com o qual se conjuga o interesse crescente pelo xamanismo), o zen e o yoga, por exemplo, se colocam não apenas como meras tendências de nossa cultura "supérflua e consumista", como consideram muitos críticos, mas como (não tão) novos núcleos ao redor dos quais nossa cultura tem se constituído desde pelo menos a chamada New Age.

Este corpo orgânico-energético e dinâmico da cultura também é nosso corpo, e os sentidos de seu desenvolvimento se revelam, portanto, em nossa prática cotidiana. A partir daí, minha sugestão é ajustar nossa prática cotidiana aos sentidos que nos parecem mais profundos, pela arte.

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Eu sei que o espírito que me anima não anima somente a mim e que há uma infinidade de outros seres que se movem em direção semelhante. Reconhecê-los me faz sentir-me menos sozinho, como parte de um organismo maior que, crendo-se independente, segundo um panorama mais geral, marcha com toda a espécie. Um conjunto desorganizado, é verdade, mas ainda assim um conjunto. Perceber este corpo orgânico maior que minha própria vida ajuda a constituir de modo particular me faz buscar investigar o sentido exato desta marcha, desprezar os sentidos mais desprezíveis, e desejar os mais...desejáveis.
Não creio tão absolutamente na autonomia do indivíduo. Ainda que se creia independente e muitas vezes solitário, sozinho, perceber a coerência relativa de modos de vida tão distintos entre si, os sentidos mais gerais de nossa aparente desorganização social, nos permite resgatar o sentimento tão necessário de pertencimento, ainda que aquilo a que se descubra pertencer não seja tão louvável. Se não é louvável e pertencemos, podemos ao menos reivindicar outros sentidos.

Se vamos reivindicar sentidos mais desejáveis, que sentidos serão estes?

As possibilidades são ao mesmo tempo excessivas e insuficientes, ou ao menos confusas demais para que pareçam inteligíveis. Aí segue-se mais ou menos à deriva junto ao fluxo principal pois, mesmo incomodados e desacreditados, não se sabe muito bem quais outros rumos tomar. Os que já tomamos para ser o que somos, já não nos individualiza e difere o suficiente? A quantidade de escolhas necessárias para conduzir a vida em nossa complexa sociedade já não nos torna automaticamente autênticos? Ou nossas escolhas são feitas a partir de leques de opções já bem abertos e disponíveis, de modo que o que somos é previsto e padronizado, como se nossa vida ou morte não fizesse qualquer diferença no conjunto da sociedade, e como se fossemos peças dispensáveis e substituíveis? Somos instigados a fazer escolhas a ponto de nos acharmos distintos, mas nossa individualidade é em geral institucionalizada. As trilhas são bem abertas, e os dramas, mesmo os mais pessoais, não são dramas desconhecidos. Todo o mecanismo social, econômico e político é ao mesmo tempo grosseiro e complexo, e a vida aí tende a ser grosseira e caótica, ou entendiante e banal. A proliferação de religiões, igrejas e gurus torna explícita a necessidade de guias espirituais, orientadores de conduta e tranquilizadores de consciência.

É claro que temos a opção de trabalhar desde dentro da estrutura mais sedimentada da cultura para a partir daí buscar a efetivação de alguma alteração significativa,  nos engajando em trincheiras não tão abertas. Se não há possibilidade de rompimento definitivo com a cultura, deve haver ao menos como efetuar alguma alteração, ainda que muito específica, no quadro mais geral das coisas. Em geral, acompanhamos os costumes e as tradições, e os questionamos apenas quando os questionamentos já são previstos - a dinâmica cultural mantém seu curso também através destes questionamentos, afinal. De todo modo, neste contexto de incertezas que tende à homogeneização absoluta de todos os fazeres, alguns se destacam. Chamam arte a estas produções que fogem à regra de seu tempo.

O caráter plástico da existência é relativamente conhecido: sabemos da possibilidade de alterá-la de acordo com nossas vontades e pensamentos. A questão é não encontrar na prática cotidiana as condições que propiciem a formulação de pensamentos e vontades com os quais nossos anseios vitais mais profundos possam corresponder, de modo que para muitos eles permanecem como se não existissem. Tal é o modo desconexo como nossos ideais e nossa prática não se encontram em nosso cotidiano. Que dirá da possibilidade de concretizar estes ideais quando em virtude de um trabalho homérico, pela arte ou pela filosofia, eles se tornam demonstráveis ou apresentáveis (posto que a ciência apenas ocupa na medida em que se aproxima destes outros campos). Uma forma de colocar em questão os sentidos do desenho que compomos com nossa vida, é suspender estas formas mais usuais, imediatas e irrefletidas, e experimentar outras. Daí o desenvolvimento do caráter crítico da arte na modernidade e sua aproximação da filosofia. Tal como escreve Foucault: “A crítica consiste em desentocar o pensamento e em ensaiar a mudança; mostrar que as coisas não são tão evidentes quanto se crê; fazer de forma que isso que se aceita como vigente em si não o seja mais em si. Fazer a crítica é tornar difíceis os gestos fáceis demais. Nessas condições, a crítica —e a crítica radical— é absolutamente indispensável para qualquer transformação”.

No espaço cotidiano, pelas exigências da vida prática mais imediata, estamos muito distantes da liberdade requerida para "desentocar o pensamento" e "tornar difíceis os gestos mais fáceis". O espaço da arte, por outro lado, não apenas admite como estimula este procedimento crítico assumido como "exercício de liberdade", como definiu Mário Pedrosa. Claro que a autonomia da arte é relativa e justamente por envolver um tipo distinto de processo produtivo, processo significativo por sua própria forma de fatura idealmente desconexa das exigências mais imediatas da vida prática, ela acaba por tornar-se produto de interesse especial. Perderemos o foco, no entanto, se nos concentrarmos no fato de que em nosso tempo muitos se aproximam da arte buscando investimento, ou representação de status, porque afinal estes interesses estão de acordo com a estrutura geral de nossa cultura e não possuem chance de representar qualquer mudança significativa.

O que há de verdadeiramente relevante a se pensar na arte é que a partir deste espaço problematicamente autônomo ela possui a capacidade de atrair o que eu e um amigo dia desses chamamos “eremitas”. Explico: os eremitas a que nos referíamos são aqueles que sentem lá no fundo da alma o chamado da arte, e precisam de algum modo aproximar-se dela. Os que, quando ouvem o som, sentem a batida de tal modo que não podem resistir ao movimento. Os que são portanto verdadeiramente afetados por ela e não podem recusá-la. Nestes casos, a arte propicia experiências que são elas mesmas simples modos de sentir e pensar, modos de se comportar e viver. Todo homem ou mulher é, na medida em que habituado a viver em ambiente aridamente individualista, um pouco eremita, e cada um sabe o que lhes move verdadeiramente - caso não saiba, o artista por seu trabalho pode fazê-lo descobrir! É necessário portanto um eremita mais radical - o artista - para dedicar-se com afinco a viver o sentido destas experiências, com vistas a potencializá-la para além dele, efetuando ganchos. Por estas experiências, a arte possui poder conector e transformador: pelo que faz sentir e pensar, ela propõe a constituição de um modo de viver. Isto esta compreendido, por exemplo, nas Cosmococas de Helio Oiticica e Neville D'Almeida: fazer arte é plasmar uma realidade, ou ao menos clamar por outra realidade. As produções mais ambiciosas surgem desse modo, como se, marginas e periféricas, ao menos no que se refere aos discursos mais presentes em nossa cultura, pretendessem que a cultura viesse a se desenvolver ao redor delas, ao menos por alguns instantes - como se desejassem constituir novos núcleos. As propostas possivelmente mais realistas pretendem plasmar espaços de debate, focos na cultura que sejam germes de transformações de modo mais estratégico. São trabalhos poéticos, críticos e conceituais que revelam abstrações na maioria das vezes de cunho social ou filosófico. Se sabemos acompanhar, algumas destas abstrações podem conduzir o espírito pensante às alturas, alturas próximas decerto àquelas que foram necessárias ao artista chegar para produzir estas obras, e desde lá, algumas delas podem fazer ver questões não tão evidentes, questões “do mundo” e, de modo mais ou menos explícito, sugerir mudanças políticas ou sociais em grande ou pequena escala. Em qualquer caso, os eremitas inevitavelmente embarcam nas propostas das experiências que lhes move, porque possuem o desejo irrecusável de viver e discutir estes sentidos e estão, por isso, dispostos a se debruçar sobre eles, simplesmente porque não há nada que lhes toque tão fundo. A arte é o sentido mais intenso e profundo da experiência de viver e por isso nada na vida faz mais sentido do que a arte.

Se a crítica puder ser aliada destes ideais mais românticos, talvez a arte possa ser reivindicada para muito além do campo que tradicionalmente reivindica autonomia, tal como era a proposta do velho projeto utópico. Aí, na medida em que a instrumentabilidade de nossos fazeres mais usuais for reduzida pelo reconhecimento do "valor em si" de cada uma delas (tal como propõe o Yoga com a respiração), aí talvez outras atividades poderão ser consideradas com a mesma dignidade da arte, e então o núcleo de nossa cultura lentamente se tornará outro.

"Um certo tipo de espírito anárquico foi necessário para dissociar da estética a produção de tipos específicos de objetos, configurando-a outra vez como ‘comportamento-vida’, ‘atos de vida’” 
...
"sinto que a vida em si mesma é o seguimento de toda experiência estética”
...
"Museu é o mundo; é a experiência cotidiana" 

Helio Oiticica

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Produzo pouco porque percebo a arte intimamente relacionada a fatores históricos, sociais e políticos, e ao mesmo tempo, entendo que estes elementos não incidem sobre a arte de modo determinante, como se ela fosse nesse quadro desprovida de qualquer potência crítica, política e social. Toda obra de arte tem a ambição de ser mais do que o reflexo de seu próprio tempo. Por isso, ao invés de procurar trabalhar em um espaço autônomo, livre das interferências do meio, me interessa reconhecer criticamente as condições deste meio e, ainda que a nível micropolítico, propor sobre elas algumas transformações. Assim, se produzo pouco, é que ainda me sinto em reconhecimento dessas condições que sei serem complexas.

Eu almejo produzir boa arte. Sei que a expectativa de que alguém jovem produza boa arte seja romântica, ou reminiscente da época dos gênios, mas não me importo. Enfatizo o processo e a etapa reflexiva da pesquisa em meu trabalho porque acredito  que o período contemporâneo exige base sólida para a produção de boa arte. "Boa arte" não é mera pretensão ou ambição, mas obrigação de quem, desmistificando o termo, opta por viver de arte. Se ela está em toda parte, e qualquer um é, ou pode ser, artista - ainda que, ironicamente ou não, pela mera instituição (já que a experiência estética é noção em nossos dias muito vaga) -, então não faz muito sentido desejar tornar-se artista propondo meros trabalhos de arte. Se arte pode ser qualquer coisa, isso pode não significar muita coisa; mas, por essa mesma razão, o que ela pode chegar a significar? Esse é a meu ver o grande interesse da condição contemporânea. Ou será recriminável dedicar a vida à máxima significação possível?

As razões pelas quais já não pinto e desenho, não ao menos como antes, não são as tendências conceituais contemporâneas, como se o contexto artístico ditasse normas e assim regulasse a (minha) produção. Se esta tendência de fato existe, sei que em alguns nichos há também críticas favoráveis a essas produções mais tradicionais e com elas, um mercado aberto e ávido por esse tipo de produção. Meu real interesse de investigação está em outra parte; tem a ver com a identificação do meu pensamento na leitura de textos como os de Hal Foster. O que quero dizer com isso é que minha produção não pretende concordar com o pensamento dele, ou com a parcela do "mundo da arte" que possui com seu pensamento crítico alguma afinidade, mas com meu próprio pensamento que encontra no dele, por ora, oportunidade de clarear-se (não gosto dessa palavra, mas é a que me aparece agora). Ainda que saiba que, pelo próprio caráter estético da obra de arte, certa obscuridade seja inevitável (eu diria mesmo desejável), entendo que na maioria das vezes, pela própria complexidade do aparelho político e econômico que sustenta, essa obscuridade é responsável pela inocuidade da maior parte da produção contemporânea - penso mais em inocuidade crítica do que poética, embora meu interesse seja conjugar estas esferas. É este interesse, aliás, o que justifica minha orientação acadêmica para "poéticas visuais" e não para "teoria, história e crítica": embora a repartição não me interesse, o segundo campo me parece muito mais presente no primeiro, do que o primeiro no segundo.

Parte da minha produção resulta mais da pressão pela produção do que mais propriamente por um desejo "interno". Por que essa pressão existe? Por que me inseri num meio que é mais moderno do que contemporâneo (não nego que haja continuidade, mas negar distinções é negar a historicidade da arte). Por enquanto meu desejo se concretiza na produção destas linhas, motivo pelo qual elas fazem muito mais sentido como arte (arte-processo) do que, por ora, qualquer pintura, desenho ou vídeo. Não digo que seja boa arte, mas já que trata-se assumidamente de um trabalho em processo...faria mais sentido se este texto estivesse escrito à óleo, numa tela, em um museu?

sexta-feira, 8 de março de 2013

Vida, trabalho e arte

Compreendemos melhor o significado de pensar a vida como obra de arte se a pensamos segundo formas conhecidas de arte. Sabemos que na execução de uma orquestra, ou de uma pintura, por exemplo, cada movimento é em alguma medida calculado, e que, no entanto, o mais importante delas escapa ao que permite o cálculo. O "coeficiente artístico", como dizia Duchamp, é consequência das surpresas e dos imprevistos que surgem pelo caminho. Pois não temos poder sobre a forma como as vontades e decisões dxs outrxs afetam as nossas, e embora possamos ensaiar em conjunto, a experiência ocorre sempre com um quê de improviso, como numa espécie de jogo mais ou menos combinado: a obra da vida se faz sempre ao vivo.

Consideremos o despertar de nossa vida sensível; quando ouvimos os primeiros sons, e sentimos os primeiros movimentos, desde o ventre materno; consideremos ainda também o momento em que abrimos pela primeira vez os olhos: talvez tenhamos nos habituado com tantos estímulos sensíveis, mas a verdade é que eles nunca deixaram de ser outros. Se, por um lado, o mundo existia desde muito antes de nosso nascimento, por outro, ele existia apenas segundo realidades diversas das nossas, pois, afinal, realidades constituídas a partir de outros corpos. Para nós que nos identificamos com estes corpos e pontos de vista que temos das coisas no mundo, a nossa percepção, inclusive da diferença em relação a nós mesmos, é absoluta; o mundo é absolutamente novo!

Ao menos à princípio.

Pois quando somos bebês, choramos e gritamos como pequenos tiranos; mal sabemos comunicar nossas vontades, mas tentamos de todas as formas. Somente aos poucos vamos descobrindo que o mundo que nos é dado à consciência se estabelece pela experiência do corpo - do nosso corpo: este que, embora em tão grande medida dependente de tantas coisas, não tem limites tão certos.

"O que pode o corpo?", perguntou Espinoza.

A criança, antes de interrogar, experimenta. Para ela, toda a existência é coextensiva em relação à experiência de seu corpo. É, pois, pelo corpo que descobrimos e admitimos a existência de uma realidade-mundo. Que este seja um fenômeno interrompido quando chegamos à idade adulta é algo que apenas artistas costumam contrariar.

"Onde há crianças, ali é uma idade de ouro"

Isto indica Novalis, mas digo por minha própria experiência. Creio que me fiz artista porque não pude me conformar totalmente com a negação de minhas vontades, nem quis me deixar enrijecer, como outros de minha estatura, para realiza-las por força de qualquer espécie de "autoridade". Aprendi, desenhando, a arte da contemplação, e desenvolvi minha sensibilidade a ponto de me deixar afetar e construir junto ao desdobramento do mundo. Hoje penso que os conflitos e as contradições que definiriam os limites de minha experiência se tornaram meu objeto de trabalho.

E enquanto considero "cálculos" na possibilidade de ensaio e organização coletiva, intimamente anseio por cálculos menos matemáticos - tão técnicos -, e mesmo filosóficos - por aquela aridez que mesmo Hegel reconheceu -, e mais poéticos. Pois é de uma orquestra que estamos falando! Para isso ser possível, é preciso dar margem à nossa vontade infinita de experimentação, e ao livre desenvolvimento da nossa imaginação criadora, pois este é certamente o cálculo de tipo mais apreciável. É preciso, para sermos mais "pragmáticos", uma educação estética. Até porque, se consideramos o estado de plenitude da experiência estética, todos devemos concordar com o desejo de uma vida como obra de arte, não? Uma vida em que a possibilidade de criação simplesmente não cesse.


Sem maiores atropelos, portanto, nos ocupemos com o que está para além de qualquer interesse não poético, e vamos exigir juntos o espaço que isso requer: espaços de arte, afinal. Porque somos artistas, e desejamos ser artistas em nossos trabalhos - que precisarão ser outros se não puderem assim nos receber: livres!

Consideremos, como fontes de inspiração, xs poetas que vivem pelas ruas, e também xs malabaristas. Estxs "vagabundxs" são muito preferíveis aos trabalhadores esforçados que todo dia se esgotam por dinheiro sem nem bem poderem suportar o sentido daquilo que fazem. Pois estes últimos acomodaram-se com o que lhes permite o salário, e, como velhos adultos, já não criam. Com maior ou menor satisfação, adequam a ideia que fazem do que seja o sucesso à possibilidade de "ascensão social", sem perceber que desse modo naturalizam hierarquias e preservam exatamente a estrutura que nós, artistas libertários, queremos ver ruir, apenas para que então ressurja um novo mundo: um mundo com condições menos desiguais para a realização do espírito; o que afinal é de interesse comum.

A ideia de uma vida livre, delirante, é muito pouco compatível com os princípios utilitaristas que justificam a existência e o uso de coisas como automóveis, por exemplo, em nossos dias. Se reconhecêssemos o interesse em cultivar este tipo poético de comportamento e quiséssemos um modo de vida compatível, precisaríamos de meios de transporte mais lentos, mais seguros, saudáveis, prazerosos; como bicicletas! Precisaríamos nos orientar a alguns dos inúmeros exemplos de experiências autogestionárias e cooperativas para ver que é possível manter relações sociais horizontais e não autoritárias. Precisaríamos instrumentalizar menos o nosso tempo, para viver mais. O presente não deve ser sacrifício por uma esperada recompensa futura: se as condições em nosso trabalho são estas, devemos recusá-lo! Assim como devemos recusar também os medicamentos e tratamentos que pretendem assegurar a adequação do nosso espírito a esta estrutura, como se ela não pudesse ser outra. É a conformidade com o sentimento de impossibilidade de plena realização de nossa potência de vida que deprime. É preciso lembrar que essa realização é na vida o que mais importa, e que o trabalho, enfim, deve estar à serviço desta verdade: próximo do estado da arte.

*
Sobre a relação entre arte e trabalho fala Jacques Rancière, no fim d'A Partilha do Sensível. Também Michel Löwy ressalta com frequência, neste aspecto, as bases românticas do pensamento de Marx. Bases estas que nos remetem, sem equívocos, ao embate entre Marx e Bakunin nos tempos da Associação Internacional dos Trabalhadores, e que permaneceram bastante vivas nos escritos de alguns dos maiores críticos de arte do século XX, como Herbert Read e Mário Pedrosa.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Sobre tradições

Quando nas academias aprendemos a desenvolver e pensar a arte em relação a uma tradição eurocêntrica e ao trabalho de artistas nela bem situados, nem sempre é propriamente problematizada a nossa identificação como parte ou extensão desta tradição. Embora se proclame o fim da história da arte, a linhagem quase exclusiva com a qual nos identificamos não deixa enganos: a história e a tradição sobrevivem. É evidente que durante um tempo se desejou aproximar de um modelo cultural que se acreditava ideal, próspero e bem desenvolvido. Mas questionado o modelo cultural tradicional com sua pretensa singularidade, e compreendida a riqueza da diversidade cultural não hegemônica, qual o sentido ideológico de continuar pensando quase exclusivamente a produção estética realizada no Brasil em relação àquela tradição? Qual o sentido de reconhecer ainda o valor artístico de obras de arte nacionais pela forma como se relacionam com aquela tradição?

Não pretendo sugerir a preservação de algo como uma identidade cultural genuinamente brasileira – autêntica e totalmente livre de influências ou entrecruzamentos. Não penso em algo como a cultura do país, nem creio que haja nada como a cultura de um país, muito menos uma cultura “pura” ou estática. Há a cultura das pessoas que são várias e cresceram em diferentes partes constituindo aqui e ali com seus hábitos e costumes diferentes histórias pessoais. Seria artificial pensar numa cultura brasileira, mas útil, certamente, pensar o modo pelo qual, por interesses políticos e econômicos, se configura entre espaços bem delimitados geograficamente um quadro de imperialismo cultural gradativamente consentido e naturalizado por cidadãos nem sempre cientes dos interesses maiores que regulam a conformação de suas próprias práticas. A este quadro nos submetemos diariamente de modo generalizado inclusive nos ambientes de arte mais legitimados.

Porque a arte em nosso país ainda é pensada tão restritamente em relação à tradição de linhagem branca? Por que é tão secundária a consideração de outras culturas? Porque, por exemplo, os índios são tão generalizadamente os outros de nossa história? Por acaso mantemos o mesmo regime de interesses econômicos e exploratórios dos nossos invasores? Porque repetimos tanto os mesmos nomes de teóricos e artistas na reflexão de nossa arte e reforçamos a lógica evolutiva que sugerem? Em que medida nos interessa identificar de modo tão enfático nosso trabalho com os trabalhos produzidos antes na Europa e agora nos EUA, e em que medida fazendo-o não atualizamos nossa posição colonial diante de uma política cultural imperialista?

Se vamos refletir e assumir criticamente nossas referências estéticas, é básico perguntar a direção a que vamos orientar nosso olhar. Confesso certo cansaço de Picasso, por exemplo, mas ao menos a arte moderna possui o mérito de ter ela mesma implodido com a tradição que lhe tornou possível...Como bem demonstraram Helio Oiticica, Lygia Clark e Mário Pedrosa, com a abertura do campo da arte temos a oportunidade de ampliar nosso horizonte de referências possíveis. Por que não o samba, a favela, a clínica, os índios...?

Olhares mais amplos capazes de compreender práticas e manifestações culturais mais diversas implicam a liberação intelectual de um modelo que ainda limita a produção artística de nosso país. De que outra maneira se pode compreender a assepsia que tem se apresentado, com raras exceções, em nossas mostras contemporâneas? O interesse da tradição europeia é óbvio, mas não é único. Ainda cabe lembrar: o mundo é muito mais amplo que a Europa e os Estados Unidos; e nossa arte, muito mais rica.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Sobre estética nominalista e romantismo na contemporaneidade

I. Do começo

Antigamente, o termo arte era usado para nomear diferentes tipos de atividades. Medicina e navegação, por exemplo, eram artes. Foi somente no século XVIII que o conceito platônico e aristotélico de mimeses foi utilizado para reunir atividades à primeira vista muito distintas, tais como a pintura, a dança, a música, o teatro, e a escultura sob uma mesma alcunha. Algumas destas atividades, no entanto, nunca se adequaram perfeitamente à teoria da arte como representação ou cópia da natureza, tal como a música. Ainda no século XVIII surge a noção de estética e, com ela, a de experiência estética. Embora sua definição nunca tenha sido consensual entre os maiores pensadores e teorizadores, a experiência estética viria a dar origem a uma nova teoria da arte, passando a substituir o regime da representatividade na função de justificar a reunião de atividades muito distintas sob um mesmo termo. Segundo o novo regime, arte seria toda produção capaz de propiciar determinado tipo de experiência. Quanto ao artista, se antes podia-se esperar de sua formação que se especializasse na representação ou cópia da natureza, agora a expectativa natural era a de que fosse um especialista na produção de obras que seriam capazes de propiciar este tipo distinto de experiência. A excepcionalidade da experiência propiciada pelo trabalho do artista passa então a confundir-se com traços de sua própria figura, e a desejada distinção da arte passa a ser buscada em sua pessoalidade, na direção de seu olhar, na gestualidade reveladora dos sentimentos e das perturbações mais íntimas, nas propriedades gerais que seu talento e suas disposições lhe permitem agregar a seu trabalho. Embora anterior à fundação da estética, um dos precursores deste movimento pode ser identificado no século XVI, na figura de Giorgio Vasari, autor de conhecido estudo sobre a vida de artistas. O que por ora nos interessa sublinhar é o modo pelo qual a história da arte se constrói a partir da história das produções humanas que se destacaram por terem rompido com a norma das produções de seu tempo; pela distinção, em suma, não apenas da experiência em si, mas de seus produtores, em particular.

Do público esperava-se, por sua vez, a adoção de uma postura mais ou menos passiva e complacente chamada por alguns, “atitude estética”. Alguns teóricos se apoiaram em escritos como “A educação estética do homem”, de Schiller, pra defender que esta atitude deveria ser estimulada já que a arte, por este seu momento mesmo de experiência "transcendente", seria capaz de superar oposições clássicas como sujeito e objeto, cultura e natureza, matéria e espírito etc.

II. O período da crítica moderna

A noção tradicional de experiência estética, embora nunca consensual entre os pensadores, era considerada uma experiência prazerosa, transformadora, transcendente e válida em si mesma. Além disso, noções adicionais bastante conhecidas como as de desinteresse e finalidade sem fim pretendiam assegurar um lugar para a arte que fosse oposto ao regime cientificista de instrumentalização do mundo e garantir assim a distinção da arte frente a outras atividades. Associada à questão do Belo, a arte, ao mesmo tempo, era um agrado ao gosto burguês - a experiência artística era prazerosa, afinal. Como resultado, a arte foi instrumentalizada (ver Benjamin Buchloh e Pierre Bordieau). Isolada em museus e salões e distante da vida,como se convencionou considerar, tornou-se artigo de luxo, decoração, forma de investimento, símbolo de status etc. Muitos artistas especialmente em fins dos anos 60 e durante os anos 70 pretenderam questionar o isolamento da arte e a limitação do circuito suficientemente “educado” para usufruir dela. Evidência da recusa em agradar o gosto e, portanto, da natureza política da arte de então, a distinção pelo choque e pelo estranhamento passou a ser uma estratégia de interesse crescente. Neste sentido, o questionamento da materialidade da obra, assim como a exploração de circuitos alternativos mediante o uso de técnicas reprodutíveis, por exemplo, assim como o interesse por poéticas ditas efêmeras, pretenderam alterar o destino tradicional da obra ampliando as camadas de sua significação num âmbito crítico.

III.  A parte que interessa

A despeito do desejo fundamental de ruptura do projeto vanguardista de alargamento do campo da arte, identifica-se facilmente nas propostas vanguardistas algo de profundamente romântico, especialmente entre aqueles que revelaram o desejo de fusão entre arte e vida. Para alguns artistas, tais como Beuys e Oiticica, havia mesmo nesse empreendimento um desejo revolucionário. Por não possuir um fim, o que implica ser de uma só vez potencialmente inesgotável e contrária à instrumentalização do mundo, a arte "em toda parte" poderia modificar nossa experiência com a vida; ressignificá-la. Possivelmente por esta razão, a experiência do cotidiano torna-se foco de interesse de tantos artistas: se é verdade que a arte dá a sentir o não sentido ou faz ver o invisível, tal como considerava Klee, então bastaria ativar a potência artística das coisas pelas quais passamos despercebidos diariamente, condicionados e automatizados que estamos por nossos hábitos e costumes, para ver as coisas cotidianas mais banais de forma diferenciada. A resistência de muitos artistas contemporâneos a espaços tradicionais da arte, tais como ateliês, museus e galerias, assim como à superespecialização do artista, não indica, ao menos em grande parte dos casos, negação da potência da arte produzida nestas - ou para estas - condições. Antes, trata-se simplesmente do desejo de potencializar a experiência das coisas que estão aquém ou além delas.

Ora, segundo a teoria estética, arte seria toda obra capaz de gerar determinado tipo de experiência: prazerosa, significativa, transformadora, transcendental, imediata, etc. Resulta que, por algo como uma convenção dada pela tradição ou por um aprendizado histórico, sentidos extraordinários são buscados em toda coisa em que seja verificada a palavra “arte”. Neste sentido, o que se conhece por teoria institucional da arte não é mais do que uma inversão da teoria estética: sugere-se a anterioridade do desígnio em relação à experiência, como se o uso da palavra “arte” pedisse (e não ocasionasse - daí que mesmo obras plásticas possam ser consideradas “propostas”-) a verificação de sentidos extraordinários. Não penso que se trate tanto de afirmar a suficiência arrogante da intenção de quem se autointitula artista ou conhecedor das artes, mas antes do uso irônico do poder histórico da instituição para atrair, muitas vezes sobre as coisas mais banais, um tipo diferenciado de atenção. O que parece estar em jogo, no fim, é o caráter dispensável porém necessário da instituição para que as condições para que algo seja arte sejam experimentadas. Se digo por exemplo que o ar engarrafado é arte não significa que o ar seja arte por que digo. A partir do momento em que digo, no entanto, a atitude geral diante da coisa proposta é inevitavelmente modificada - a instituição tem, afinal, um passado histórico e uma tradição, se não por todos conhecida, ao menos, pelo próprio tratamento conferido tradicionalmente à arte, certamente sentida. O trabalho do artista que lida com a teoria institucional está, portanto, no reconhecimento da arte no mundo e no deslocamento da coisa reconhecida como arte para um ambiente institucional, não na produção material do que quer que seja. O artista, neste caso, usa da instituição para tornar a suposta experiência significativa perceptível. A teoria institucional da arte seria então, na verdade, uma ironia que se pretende crítica da instituição em seu sentido mais tradicional. Ela funciona apenas como um pretexto para que a arte seja reconhecida no mundo e ela depende, em última instância, de uma teoria estética anterior que a sustente. O museu pode assim ser tomado como um dispositivo. Provocativos como são exemplos clássicos os ready-mades de Marcel Duchamp, estes trabalhos propõem que não seja apenas nos muitos distintos espaços tradicionais de arte, pelas mãos excepcionalmente treinadas do pianista (penso em John Cage), ou pelos complexos estudos de cor dos que se dedicam à visualidade, que a arte possa revelar-se (o que, insisto, não reduz em nada o interesse dos trabalhos produzidos destas maneiras). Esta é a estética nominalista.

A reivindicação de uma experiência diferenciada do que é geralmente tido como banal pretende descondicionar o cotidiano e desautomatizar o comportamento. Estes artistas talvez queiram dizer que o invisível que a arte pretende fazer ver não está tão longe, nem é assim uma experiência que exige tão árdua especialização, nem bem um campo fechado para ocorrer. Neste ponto, a meu ver, o procedimento nominalista se aproxima, ao menos em potência, das filosofias orientais. De acordo com  o pesamento zen, por exemplo, a atitude estética contemplativa não permanece restrita a campo tão limitado tal como ocorre no ocidente. Formas de admiração análogas a esta, dedicada de modo tão exclusivo à arte, na cultura ocidental, encontram, na cultura oriental, campos muito mais vastos. Elas incluem a alimentação, a moradia, a vestimenta, a relação com o corpo e o comportamento de modo geral. Não por acaso, muitos artistas contemporâneos assumem, com a ampliação do campo da arte e o projeto de fusão entre arte e vida, uma aproximação efetiva entre as culturas ocidental e oriental.

Se isto tudo é balela de artista que se aproveita da indeterminação do campo da arte pra propor “qualquer coisa” como arte, ou se há de fato nessa atitude algum interesse poético e político, cabe ao público considerar.