terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Sobre tradições

Quando nas academias aprendemos a desenvolver e pensar a arte em relação a uma tradição eurocêntrica e ao trabalho de artistas nela bem situados, nem sempre é propriamente problematizada a nossa identificação como parte ou extensão desta tradição. Embora se proclame o fim da história da arte, a linhagem quase exclusiva com a qual nos identificamos não deixa enganos: a história e a tradição sobrevivem. É evidente que durante um tempo se desejou aproximar de um modelo cultural que se acreditava ideal, próspero e bem desenvolvido. Mas questionado o modelo cultural tradicional com sua pretensa singularidade, e compreendida a riqueza da diversidade cultural não hegemônica, qual o sentido ideológico de continuar pensando quase exclusivamente a produção estética realizada no Brasil em relação àquela tradição? Qual o sentido de reconhecer ainda o valor artístico de obras de arte nacionais pela forma como se relacionam com aquela tradição?

Não pretendo sugerir a preservação de algo como uma identidade cultural genuinamente brasileira – autêntica e totalmente livre de influências ou entrecruzamentos. Não penso em algo como a cultura do país, nem creio que haja nada como a cultura de um país, muito menos uma cultura “pura” ou estática. Há a cultura das pessoas que são várias e cresceram em diferentes partes constituindo aqui e ali com seus hábitos e costumes diferentes histórias pessoais. Seria artificial pensar numa cultura brasileira, mas útil, certamente, pensar o modo pelo qual, por interesses políticos e econômicos, se configura entre espaços bem delimitados geograficamente um quadro de imperialismo cultural gradativamente consentido e naturalizado por cidadãos nem sempre cientes dos interesses maiores que regulam a conformação de suas próprias práticas. A este quadro nos submetemos diariamente de modo generalizado inclusive nos ambientes de arte mais legitimados.

Porque a arte em nosso país ainda é pensada tão restritamente em relação à tradição de linhagem branca? Por que é tão secundária a consideração de outras culturas? Porque, por exemplo, os índios são tão generalizadamente os outros de nossa história? Por acaso mantemos o mesmo regime de interesses econômicos e exploratórios dos nossos invasores? Porque repetimos tanto os mesmos nomes de teóricos e artistas na reflexão de nossa arte e reforçamos a lógica evolutiva que sugerem? Em que medida nos interessa identificar de modo tão enfático nosso trabalho com os trabalhos produzidos antes na Europa e agora nos EUA, e em que medida fazendo-o não atualizamos nossa posição colonial diante de uma política cultural imperialista?

Se vamos refletir e assumir criticamente nossas referências estéticas, é básico perguntar a direção a que vamos orientar nosso olhar. Confesso certo cansaço de Picasso, por exemplo, mas ao menos a arte moderna possui o mérito de ter ela mesma implodido com a tradição que lhe tornou possível...Como bem demonstraram Helio Oiticica, Lygia Clark e Mário Pedrosa, com a abertura do campo da arte temos a oportunidade de ampliar nosso horizonte de referências possíveis. Por que não o samba, a favela, a clínica, os índios...?

Olhares mais amplos capazes de compreender práticas e manifestações culturais mais diversas implicam a liberação intelectual de um modelo que ainda limita a produção artística de nosso país. De que outra maneira se pode compreender a assepsia que tem se apresentado, com raras exceções, em nossas mostras contemporâneas? O interesse da tradição europeia é óbvio, mas não é único. Ainda cabe lembrar: o mundo é muito mais amplo que a Europa e os Estados Unidos; e nossa arte, muito mais rica.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Sobre estética nominalista e romantismo na contemporaneidade

I. Do começo

Antigamente, o termo arte era usado para nomear diferentes tipos de atividades. Medicina e navegação, por exemplo, eram artes. Foi somente no século XVIII que o conceito platônico e aristotélico de mimeses foi utilizado para reunir atividades à primeira vista muito distintas, tais como a pintura, a dança, a música, o teatro, e a escultura sob uma mesma alcunha. Algumas destas atividades, no entanto, nunca se adequaram perfeitamente à teoria da arte como representação ou cópia da natureza, tal como a música. Ainda no século XVIII surge a noção de estética e, com ela, a de experiência estética. Embora sua definição nunca tenha sido consensual entre os maiores pensadores e teorizadores, a experiência estética viria a dar origem a uma nova teoria da arte, passando a substituir o regime da representatividade na função de justificar a reunião de atividades muito distintas sob um mesmo termo. Segundo o novo regime, arte seria toda produção capaz de propiciar determinado tipo de experiência. Quanto ao artista, se antes podia-se esperar de sua formação que se especializasse na representação ou cópia da natureza, agora a expectativa natural era a de que fosse um especialista na produção de obras que seriam capazes de propiciar este tipo distinto de experiência. A excepcionalidade da experiência propiciada pelo trabalho do artista passa então a confundir-se com traços de sua própria figura, e a desejada distinção da arte passa a ser buscada em sua pessoalidade, na direção de seu olhar, na gestualidade reveladora dos sentimentos e das perturbações mais íntimas, nas propriedades gerais que seu talento e suas disposições lhe permitem agregar a seu trabalho. Embora anterior à fundação da estética, um dos precursores deste movimento pode ser identificado no século XVI, na figura de Giorgio Vasari, autor de conhecido estudo sobre a vida de artistas. O que por ora nos interessa sublinhar é o modo pelo qual a história da arte se constrói a partir da história das produções humanas que se destacaram por terem rompido com a norma das produções de seu tempo; pela distinção, em suma, não apenas da experiência em si, mas de seus produtores, em particular.

Do público esperava-se, por sua vez, a adoção de uma postura mais ou menos passiva e complacente chamada por alguns, “atitude estética”. Alguns teóricos se apoiaram em escritos como “A educação estética do homem”, de Schiller, pra defender que esta atitude deveria ser estimulada já que a arte, por este seu momento mesmo de experiência "transcendente", seria capaz de superar oposições clássicas como sujeito e objeto, cultura e natureza, matéria e espírito etc.

II. O período da crítica moderna

A noção tradicional de experiência estética, embora nunca consensual entre os pensadores, era considerada uma experiência prazerosa, transformadora, transcendente e válida em si mesma. Além disso, noções adicionais bastante conhecidas como as de desinteresse e finalidade sem fim pretendiam assegurar um lugar para a arte que fosse oposto ao regime cientificista de instrumentalização do mundo e garantir assim a distinção da arte frente a outras atividades. Associada à questão do Belo, a arte, ao mesmo tempo, era um agrado ao gosto burguês - a experiência artística era prazerosa, afinal. Como resultado, a arte foi instrumentalizada (ver Benjamin Buchloh e Pierre Bordieau). Isolada em museus e salões e distante da vida,como se convencionou considerar, tornou-se artigo de luxo, decoração, forma de investimento, símbolo de status etc. Muitos artistas especialmente em fins dos anos 60 e durante os anos 70 pretenderam questionar o isolamento da arte e a limitação do circuito suficientemente “educado” para usufruir dela. Evidência da recusa em agradar o gosto e, portanto, da natureza política da arte de então, a distinção pelo choque e pelo estranhamento passou a ser uma estratégia de interesse crescente. Neste sentido, o questionamento da materialidade da obra, assim como a exploração de circuitos alternativos mediante o uso de técnicas reprodutíveis, por exemplo, assim como o interesse por poéticas ditas efêmeras, pretenderam alterar o destino tradicional da obra ampliando as camadas de sua significação num âmbito crítico.

III.  A parte que interessa

A despeito do desejo fundamental de ruptura do projeto vanguardista de alargamento do campo da arte, identifica-se facilmente nas propostas vanguardistas algo de profundamente romântico, especialmente entre aqueles que revelaram o desejo de fusão entre arte e vida. Para alguns artistas, tais como Beuys e Oiticica, havia mesmo nesse empreendimento um desejo revolucionário. Por não possuir um fim, o que implica ser de uma só vez potencialmente inesgotável e contrária à instrumentalização do mundo, a arte "em toda parte" poderia modificar nossa experiência com a vida; ressignificá-la. Possivelmente por esta razão, a experiência do cotidiano torna-se foco de interesse de tantos artistas: se é verdade que a arte dá a sentir o não sentido ou faz ver o invisível, tal como considerava Klee, então bastaria ativar a potência artística das coisas pelas quais passamos despercebidos diariamente, condicionados e automatizados que estamos por nossos hábitos e costumes, para ver as coisas cotidianas mais banais de forma diferenciada. A resistência de muitos artistas contemporâneos a espaços tradicionais da arte, tais como ateliês, museus e galerias, assim como à superespecialização do artista, não indica, ao menos em grande parte dos casos, negação da potência da arte produzida nestas - ou para estas - condições. Antes, trata-se simplesmente do desejo de potencializar a experiência das coisas que estão aquém ou além delas.

Ora, segundo a teoria estética, arte seria toda obra capaz de gerar determinado tipo de experiência: prazerosa, significativa, transformadora, transcendental, imediata, etc. Resulta que, por algo como uma convenção dada pela tradição ou por um aprendizado histórico, sentidos extraordinários são buscados em toda coisa em que seja verificada a palavra “arte”. Neste sentido, o que se conhece por teoria institucional da arte não é mais do que uma inversão da teoria estética: sugere-se a anterioridade do desígnio em relação à experiência, como se o uso da palavra “arte” pedisse (e não ocasionasse - daí que mesmo obras plásticas possam ser consideradas “propostas”-) a verificação de sentidos extraordinários. Não penso que se trate tanto de afirmar a suficiência arrogante da intenção de quem se autointitula artista ou conhecedor das artes, mas antes do uso irônico do poder histórico da instituição para atrair, muitas vezes sobre as coisas mais banais, um tipo diferenciado de atenção. O que parece estar em jogo, no fim, é o caráter dispensável porém necessário da instituição para que as condições para que algo seja arte sejam experimentadas. Se digo por exemplo que o ar engarrafado é arte não significa que o ar seja arte por que digo. A partir do momento em que digo, no entanto, a atitude geral diante da coisa proposta é inevitavelmente modificada - a instituição tem, afinal, um passado histórico e uma tradição, se não por todos conhecida, ao menos, pelo próprio tratamento conferido tradicionalmente à arte, certamente sentida. O trabalho do artista que lida com a teoria institucional está, portanto, no reconhecimento da arte no mundo e no deslocamento da coisa reconhecida como arte para um ambiente institucional, não na produção material do que quer que seja. O artista, neste caso, usa da instituição para tornar a suposta experiência significativa perceptível. A teoria institucional da arte seria então, na verdade, uma ironia que se pretende crítica da instituição em seu sentido mais tradicional. Ela funciona apenas como um pretexto para que a arte seja reconhecida no mundo e ela depende, em última instância, de uma teoria estética anterior que a sustente. O museu pode assim ser tomado como um dispositivo. Provocativos como são exemplos clássicos os ready-mades de Marcel Duchamp, estes trabalhos propõem que não seja apenas nos muitos distintos espaços tradicionais de arte, pelas mãos excepcionalmente treinadas do pianista (penso em John Cage), ou pelos complexos estudos de cor dos que se dedicam à visualidade, que a arte possa revelar-se (o que, insisto, não reduz em nada o interesse dos trabalhos produzidos destas maneiras). Esta é a estética nominalista.

A reivindicação de uma experiência diferenciada do que é geralmente tido como banal pretende descondicionar o cotidiano e desautomatizar o comportamento. Estes artistas talvez queiram dizer que o invisível que a arte pretende fazer ver não está tão longe, nem é assim uma experiência que exige tão árdua especialização, nem bem um campo fechado para ocorrer. Neste ponto, a meu ver, o procedimento nominalista se aproxima, ao menos em potência, das filosofias orientais. De acordo com  o pesamento zen, por exemplo, a atitude estética contemplativa não permanece restrita a campo tão limitado tal como ocorre no ocidente. Formas de admiração análogas a esta, dedicada de modo tão exclusivo à arte, na cultura ocidental, encontram, na cultura oriental, campos muito mais vastos. Elas incluem a alimentação, a moradia, a vestimenta, a relação com o corpo e o comportamento de modo geral. Não por acaso, muitos artistas contemporâneos assumem, com a ampliação do campo da arte e o projeto de fusão entre arte e vida, uma aproximação efetiva entre as culturas ocidental e oriental.

Se isto tudo é balela de artista que se aproveita da indeterminação do campo da arte pra propor “qualquer coisa” como arte, ou se há de fato nessa atitude algum interesse poético e político, cabe ao público considerar.