quinta-feira, 27 de junho de 2013

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E agora, pra onde vamos com tão múltiplos interesses? O sentido é sempre mais certo quando as restrições são evidentes. Quando não podemos nos deslocar, ou quando somos censurados, por exemplo. A conquista da liberdade se torna logo uma razão para brigar e viver. Quanto menor a liberdade, mais evidente é esta razão. Foi assim que as pessoas se movimentaram contra a Ditadura, e saíram às ruas pelas Diretas já, e foi assim que estas manifestações de agora tomaram as proporções que tomaram.

Esta é a ambigüidade da falta de liberdade: se de um lado ela causa sofrimento, pq quanto menor a liberdade, mais nos parece indigna nossa condição, de outro, a falta de liberdade preenche a vida com motivações relacionadas ao desejo de superar esta condição, conquistando pela liberdade a dignidade de ser conforme ao desejo. Chego a pensar que nosso interesse pela música e pela arte dos anos 60 e 70 se deve basicamente, e ironicamente, ao clima de guerra e de repressão desse período. Há algo como uma necessidade de compensação inerente à própria vida que exige que, pra se manter em mínimo equilíbrio, em época de coisa muito escancaradamente ruim, se faça coisa muito boa – ação e reação, decerto. Assim, tanto melhor se esta falta de liberdade for um sentimento comum, como o desejo de superá-la, porque aí a motivação que nos preenche é também comum, e nos sentimos maiores, mais fortes para enfrentar o que nos priva a liberdade. Foi o que para muitos ocorreu no início destas manifestações. Era como se estivéssemos “fazendo história”, como cheguei a ouvir e ler por aqui. É uma pena se isso indica que cotidianamente sentimos não fazer história alguma, pq por certo fazemos...decerto as razões de indignação são muito pulverizadas, aqui umas, ali outras, e assim elas seguem, como se não tivessem relação umas com as outras, fracas demais pra romperem com as ordens a q nos submetemos, descontentes e inertes, diariamente.

Ia dizendo que as razões de nossa vida se tornam mais evidentes quanto menor nossa liberdade, e é o desejo de ampliá-la que pode, por exemplo, unir pessoas tanto no trabalho, quanto no crime, ou no ativismo político: muda em cada caso a forma, mas mantém-se o desejo comum de ampliar a liberdade. O ponto é que, como sabemos que privações como a fome nos causam sofrimento, tendemos a ser insaciáveis em nosso desejo de liberdade, e desejamos sempre mais: mais opções do que comer, de onde morar, de como se vestir, pra onde ir, com quem se casar...

A princípio, nosso impulso humano de sobrevivência nos impele a agir de modo individualista. A liberdade que nos interessa inicialmente é a nossa. Mas há, pelo desenvolvimento de nossa capacidade de afeto, a possibilidade de identificação entre nós e outros, de modo que podemos ampliar a esfera de nosso desejo por liberdade para incluir aqueles que consideramos iguais. É na diferença desse sentimento de igualdade, creio, que podem ser identificados alguns posicionamentos políticos conflitantes (e é onde a direita conservadora e o fascismo se aproximam). Iguais são apenas aqueles mais próximos de nós? Nossa família? Ou aqueles que possuem nossa cor de pele? Nosso sexo? Nossa nacionalidade? Ou de modo mais abrangente, iguais são todos os seres humanos, cada qual com seu desejo de liberdade particular?

Muita gente revela achar contraditório que alguns intelectuais de esquerda se preocupem com a situação da classe operária, ou que classes privilegiadas se preocupem com a situação social das classes mais baixas. Mas isto é pressupor um sentido de igualdade muito limitado. Se esquecermos por um instante a divisão de classes e partirmos do pressuposto de que todos desejamos e lutamos por nossa liberdade, então o sentido do empenho de uma pessoa revela aquilo com o que ela individualmente se identifica – “nossa liberdade” não precisa se restringir à liberdade de uma classe, pode ser a liberdade da humanidade, se quisermos. Não se trata, enfim, de hipocrisia, mas de usar a distinção, que já existe, no sentido de diminuí-la. Não é porque ela é dada que precisamos nos conformar a ela, e afirmá-la indefinidamente.

Claro que é problemático nos identificarmos de modo tão generalizado com o outro, sendo este outro invariavelmente representado por idéias abstratas como as de classe, ou mesmo por entidades genéricas como "a humanidade”. Por isso, creio, Foucault destacava, ao invés disso, a questão do “cuidado de si”. O que não é de modo algum egoísta ou mesmo individualista já que, como ele dizia, “é cuidando de mim que cuido do outro”. As coisas se dão em relação, afinal.

Se sabemos que, na raiz, nosso desejo de liberdade é comum, como admitir o choque violento e não acidental entre duas ou mais pessoas? Em que situações extremas é verdadeiramente justificado o enfrentamento concreto e violento entre pessoas ou grupos? Outro dia pensei que devia tratar-se de um tipo de impulso instintivo e pouco consciente, puro extravasamento, pq a violência faz parte dos instintos humanos mais básicos. Mas se é assim, decerto é necessário montar mais ringues, onde estas questões políticas referentes à negociação dos direitos de liberdade de cada um podem ser suspensas, de acordo com as regras de algo como um jogo. Pq, de fato, talvez o próprio sucesso de filmes de carnificina e de jogos de vídeo-game e de computador em que as pessoas matam umas às outras indique algo como um instinto sanguinário que não tem encontrado muito espaço na pacata rotina dos dias das pessoas. O que impressiona mesmo é verificar que essa liberação não é sempre tão inconsciente ou impulsiva, mas fruto de convicção extrema. Aí se percebe bem que não é outra coisa que não arrogância o que leva a crer na superioridade da idéia de liberdade de um em relação a idéia de outro. Não é justamente deixar de reconhecer o outro como igual? Digo isso pq tenho mesmo dificuldade de entender que, justo qndo a polícia deixa a manifestação em paz, as pessoas começam a se degladiar entre si! É realmente bizarro que a gente possa ser tão estúpido. A gente vai brigar entre a gente? Mesmo? O problema não era a repressão da polícia? Agora a gente vai reprimir um ao outro? 


Decerto é utópico achar que pelo simples desejo comum de liberdade pode haver concordância entre todas as partes, ou que conflitos de interesses podem ocorrer de forma mais compreensiva e menos agressiva. De todo modo, o que não costuma ser dito é que a conquista gradativa da liberdade também costuma conduzir ao sofrimento. Isso porque o que fazemos com ela é geralmente usá-la para obter mais liberdade. E o círculo vicioso nos leva para onde? Há uma angústia existencial relacionada à conquista gradativa da liberdade. Não é um sofrimento menos grave do que as privações mais evidentes, como talvez nos pareça. Basta conferir nossos índices de tristeza crônica, depressão e suicídio. Na medida em que aumenta nossa liberdade, aumentam nossas opções, diminuem nossas certezas, se ampliam as incertezas: pra onde vamos? E, afinal, de que necessidades últimas poderemos desejar nos livrar? E as coisas das quais não podemos escapar, como a morte? O que nos livra da morte? A conquista gradativa da liberdade nos revela o modo como ela é na realidade inalcançável. Nada disso é, na realidade, mal da liberdade propriamente dita, mas da forma fantasiosa como acreditamos que ela é possível.

A aplicação de nosso tempo no sentido de vencer limitações indica que o sentido de nossa vida é a conquista da liberdade. Mas isto é o mesmo que depositar o sentido da vida num vazio. Mais propriamente, significa torná-la um meio - para alcançar um fim que nunca chega – pq afinal a liberdade permanece sempre num horizonte utópico. As limitações vão sendo sempre outras, mas elas continuam existindo.

Quando artistas e filósofos falaram de tomar a vida como obra de arte, o que consideravam era a possibilidade de a vida ter fim em si mesma. A “vida” talvez seja abstração muito grande; o que temos é o instante presente, sempre muito único. A vida tem fim em si mesma quando o que fazemos no instante presente não tem interesse em chegar a outra parte senão naquilo que já é. Somos artistas quando isso ocorre, enquanto isso ocorre. Não importa que daí não resulte obra; importa a experiência – tanto melhor se houver obra, como registro da experiência, mas artista é quem vive a experiência, antes do que quem propõe ou distribui obras que talvez a possibilitem. Pq aí, na linha do que dizíamos de Foucault, como tudo se dá em relação, cuidando da própria experiência, a experiência do outro é conseqüência. O ponto é que em alguns momentos de nossa vida, todos somos artistas. É quando os sentidos profundos de nossa ideia transcendente de liberdade se realizam, tornam-se imanentes, sem que muitas vezes a gente se dê conta. São momentos raros, infelizmente.

Há quem ache “perigoso” ou “perverso” isso de desejar a fusão entre arte e vida. Já nem se fala mais tanto nisso em arte. De fato, talvez pareça suspeito já que isso de tomar toda coisa como fim em si pode confundir-se com conformidade, e a gente aprendeu que o certo é desejar progredir, estar insatisfeito com o presente e desejar satisfação em outra parte, em outro tempo; nunca no presente. Mas a gente não percebe que assim a vida apenas passa: é só qndo a vida torna-se fim é que vivemos - qndo ela não é meio para chegar a parte alguma. O que é particularmente difícil imaginar em situações pouco favoráveis. Mas acho que foi uma “aceitação” desse tipo a que estava em jogo quando Jesus ou Sócrates aceitaram morrer. Não é exatamente uma conformidade já que é uma aceitação desobediente, desafiante, porque fiel a si. Alcançar este estado é a meu ver alcançar o estado estético, é realizar a arte na vida, o que talvez seja o mesmo que “iluminar-se”, ou tornar-se sábio. Eu obviamente ainda não estou totalmente lá, não falo como se estivesse, mas pelo menos sei que “lá” não é outra parte que não aqui. Acho que isso já é alguma coisa.

*texto originalmente publicado no facebook.