quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Articulações para sair da ostra

Há no mundo tanta gente e tanta complexidade que pouco se consegue admitir além do caráter múltiplo e fluído do nosso tempo. Se por um lado apenas trabalhos teóricos muito elaborados acabam formulando noções que se aproximam conceitualmente da complexidade de nossa sociedade (“do espetáculo”, “do controle”, “de risco”), a verdade é que esta apreensão pode apenas ocorrer em um plano abstrato, e nunca de modo concreto. Quer dizer, por maior que seja o distanciamento crítico desejado, na realidade efetiva de nossos dias, este distanciamento é impossível: operamos a partir do interior de um mecanismo que inevitavelmente condiciona o funcionamento de nossas vidas – estamos imersos nesta merda toda, enfim. Considere-se, por exemplo, que no decorrer de nossas vidas ligeiras nos preocupamos quase que exclusivamente com interesses pessoais, diretos e urgentes como comer, morar, trabalhar, amar, se entreter, os religiosos poderiam somar aí se salvar, talvez...São ações que se adequam e ocorrem perfeitamente ao/no interior da estrutura política e econômica vigente, não apenas desprovidas de chances de provocar qualquer alteração significativa, (foi-se o tempo em que uniões homoafetivas, por exemplo, eram subversivas, libertárias ou revolucionárias) como funcionando a favor de um incremento da engrenagem toda. Diversamente limitadas, não apenas por entraves econômicos e políticos, mas também por entraves discursivos (embora se possa argumentar que os discursos hegemônicos estejam sempre em conformidade com a base econômica e política), e direcionadas em cada caso para a manutenção de uma rotina individual, de interesses individuais, nossas vidas são percebidas, geralmente, independentemente de um contexto, mais propriamente um condicionante, social e, ao mesmo tempo, acabam sendo pilares necessários desta macro-estrutura que nos alimenta e limita. Por isso mesmo, por maior que seja nossa indignação, acabamos por viver invariavelmente cada vez mais fechados em espécies de ostras, fazendo muito pouco no sentido de alterar o real estado das coisas.

Alguns acontecimentos políticos e sociais, no entanto, pela proximidade, pelas dimensões, implicações ou pela própria relevância, possuem a particularidade de nos mover um pouco para além de nosso individualismo rotineiro. Por estas razões, estes fenômenos exercem um impacto que não se pode negar e exigem invariavelmente uma atitude, ou ao menos um posicionamento: de que lado você está? alguém pergunta, perturbando o sossego (ou a perturbação) habitual de seu horário de almoço. Aí é curioso notar a maneira cômoda como inúmeros discursos são imediatamente fabricados a partir do interior de uma destas ostras; todos muito cheios de opiniões prontas e se acreditando profundamente autênticos. A maioria não sustenta, infelizmente, a mínima articulação e se limita a bradar frases de efeito moral mais ou menos arbitrárias e a repetir imperativos mais ou menos caducos. Raramente se admite a ausência de respostas fáceis.

Estou pensando no caso recente PM-USP e, mais especificamente, na idéia de que todos que são a favor da presença da polícia militar no campus universitário sejam reacionários, burgueses, conservadores, repressores (“de direita”), enquanto os que são contrários, são maconheiros, baderneiros, revolucionários, radicais, libertários (“de esquerda” ). Naturalizadas, estas generalizações acabam carregando consigo uma série de sentidos que acabam por orientar de modo mais ou menos automático decisões, posicionamentos e ações (como se não ser maconheiro fosse motivo suficiente para ser a favor da polícia no campus, ou como se não houvesse maconheiro reacionário). Para complicar um pouco a discussão e inverter a aparente obviedade dos fatos, seria possível pensar no voto pela presença da PM no campus como uma atitude de algum modo "libertária", e o voto contra a presença da PM, como conservadora ou reacionária? Ao menos para fins de provocação, eu pretendo argumentar que sim.

Pretensamente contendedora de conflitos e mantenedora da “ordem”, a atuação da polícia militar é sem dúvida problemática, não pretendo afirmar o contrário. Enquanto a PM responde armada, com intimidação, coerção e violência a qualquer sinal do que se considera delinquência ou ilegalidade, uma visão minimamente “humanitária” defenderia em lugar desta, práticas mais tolerantes e compatíveis com aquelas velhas noções de liberdade, igualdade e fraternidade, segundo as quais, antes de qualquer solução imediata dada por atitudes repressivas, mais valeria o diálogo e, a longo prazo, a educação. Postos desta forma, no entanto, ambos os posicionamentos são insustentáveis, o primeiro pela própria violência, o segundo, pela ingenuidade. Quero dizer que pra que uma melhoria da qualidade da vida social ocorra de maneira efetiva, é necessário uma mudança estrutural muito maior do que o simples banimento do policiamento militar de um determinado espaço. Isso porque antes de ser causa de problemas, a PM é sintoma de traços fundamentais da nossa sociedade; algo como um “mal necessário”, para muitxs.

Antes de propor um meio termo, algo entre 8 e 80, como um aprimoramento da guarda universitária como vem sendo sugerido, proponho uma perspectiva talvez pouco considerada: um dos elementos que me parecem fundamentais à estrutura social vigente é a profunda desigualdade que a define, assim como a maneira subsequente como cada pólo se acha autônomo em relação a outro – pelo menos a classe mais privilegiada, “alta”, com relação à ”baixa” – a relação normativa se não é de completa exclusão, é de exploração e subserviência. É pela incompatibilidade destes pólos que se acham tão profundamente distintos que há tensão, choque e, finalmente, a necessidade da existência de algo como uma polícia militar, para conter conflitos e manter a ordem via repressão. A polícia fora do campus, finalmente, corrobora com esta distinção – não entre ricos e pobres, no caso, mas entre universitários e o restante da sociedade.

Certo que há uma autarquia universitária prevista constitucionalmente que assegura à universidade "autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial". Esta autonomia, no entanto, não é absoluta: cabe considerar então até que ponto é de fato pertinente que ela se estenda. Não ouso ir tão longe; a discussão dos contornos do princípio de autonomia universitária é uma questão jurídica e, haja vista os termos em que se dá a discussão, ela se dá especialmente entre especialistas da área de direito, coisa que não sou. Por ora, me limito a questionar a extensão desta autonomia e ao invés de querer reafirmá-la como parece ser a vontade de boa parte dos manifestantes contrários à presença da PM no campus, simpatizo muito mais com a idéia de destruir os muros que isolam a cidade universitária do restante da cidade de São Paulo, ou pelo menos as catracas e a exigência de apresentação de carteirinha. Penso que a distinção do campus com relação ao restante da cidade propicie o desenvolvimento de um espaço experimental, onde se poderia contar, por exemplo, com maior liberdade de ação política; mas também penso que a autonomia da cidade universitária com relação à cidade de São Paulo pode esconder, na verdade, a recusa em lidar com problemas muito mais complexos que se estendem para além dos muros da universidade e, enfim, o desejo de criação de uma outra ostra. Em que medida é justo, se falamos de direitos, que universitários experimentem uma liberdade maior do que não universitários? o que exatamente legitima este privilégio?

Não sou obviamente a favor da ação truculenta da polícia por ser contra a criação de um oásis universitário. Antes, sou a favor de um entrelaçamento dialógico entre esferas que se acham autônomas (me refiro novamente à relação entre universitários e não universitários) e a favor de uma esfera pública crescente. Nesse sentido, não critico inteiramente o rebuliço todo causado pela ocupação da reitoria por alguns dos estudantes contrários à presença da PM na universidade, muito menos a greve em reação à maneira como a reitoria foi retomada, principalmente quando ela se soma a causas como as relacionadas à gestão do atual Reitor da universidade. Em última instância, a coisa toda permitiu que muitos, eu aí me incluo, buscassem sair do conforto de suas preocupações cotidianas articulando o próprio pensamento em uma direção menos habitual do que necessária. Antes tarde do que nunca.

sábado, 27 de agosto de 2011

"...
Escutamos a voz dos outros com os ouvidos (portanto no mundo do comunicável), mas escutamos nossa voz, de nós mesmos (e mesmo do outro de nós) com a nossa garganta. E o milagre, a maravilha, é até o 'horror quase místico', é que acontece de escutarmos a voz do outro, a outra voz, com a nossa própria garganta. Essa 'violência comunial' se chama amar; amar de amizade (é a 'fraternidade viril' experimentada no combate) ou amar de amor (é o enlace, a comunhão dos amantes 'no continuum animal e noturno'). Mas isso se chama também ler, ouvir 'subir pela garganta a voz das obras mudas', quer dizer, destiná-las a si. É por essa fusão apenas [de duas gargantas em uma] (que) a perenidade eventual das obras pode ser compreendida.
...
O afeto, a 'frase' inarticulada, impartilhável que é, seu excesso e sua dívida – e portanto a tarefa de testemunhar isso, de dá-lo à partilha da 'sensibilidade'–, eis o que impediria de conceder a última palavra à melancolia do 'nada vale', e mesmo a do 'nada existe'. Pois há, resta, 'contudo', um algo: a maravilha, ínfima e precária, que é um sinal feito pelo desconhecido, subindo pela garganta, transfundido de garganta em garganta, por ocasião de um encontro, de amizade, de pensamento, de escrita.”

Trechos de “A dívida de Afeto” de Plínio W. Prado Jr, sobre a obra de Jean-François Lyotard.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Arte e imaginário

Uma certa parcela da crítica, especialmente a mais influenciada pelo pensamento marxista, não demonstra grande interesse por poéticas que de modo mais ou menos explícito se inserem em algum ponto da tradição romântica propondo por exemplo alguma dose de fantasia, sonho, lirismo e transcendência. Estes termos tornaram-se quase obscenos em certos círculos da contemporaneidade. Propostas “românticas” como estas teriam um efeito anestesiante e seriam sinal de alienação. A arte de acordo com estes pensadores deveria buscar um envolvimento efetivo com o tecido social da realidade, levando em conta seus problemas mais urgentes, ao invés de propor algo como refúgio e escape.

Evidente que certas questões sociais são urgentes; urgentes como é urgente que se preste socorro a alguém que se acidenta. Claro que se o número de pacientes é grande e é grave o estado em que se encontram, precisamos de uma quantidade compatível de pessoas capacitadas para o atendimento destes pacientes. Esperar que por causa da gravidade da situação qualquer um possa atuar como  médico, porém, é delírio. Quer dizer, o envolvimento da arte com campos como antropologia, sociologia e história é sem sombra de dúvidas positivo: é em muitos aspectos salutar que o campo autônomo da arte tenha se esvaído e que a sempre alardeada aproximação entre arte e vida não seja puramente teórica. No entanto, se com essa aproximação chega-se a censurar elementos cuja função social não seja clara, temos aí um problema.

Do meu ponto de vista a questão é sintoma de uma simplificação do que seja propriamente político. Obras que tratam, por exemplo, uma da pobreza e outra do amor, não podem ser consideradas a primeira de significação político-social e a segunda, alienada e por isso indesejável. Chico Buarque já compôs e cantou músicas de explícito teor político, mas é inegável que a maior parte de sua obra trate de temas como as dores e as alegrias de relacionamentos amorosos. A poesia de sua obra seria certamente muito distinta tivesse o artista se proposto a um engajamento mais rigoroso, mas não o fez. A poesia de sua obra não deve ser considerada menor por isso; ou pior, a poesia não pode ser considerada oposta à política. Cantar o amor é fazer política tanto quanto cantar a violência ou a miséria em tom de denúncia.

Alienação é estado quase inerente à condição contemporânea. O que não significa que devamos nos acomodar com nossa precária situação. Pelo contrário, saber que o “espetáculo” está em toda parte deveria nos prontificar para o desmascaramento do mundo, ou, se isso soa demasiado paranóico, pelo menos nos tornar mais atentos. Aí é preciso reconhecer que esta atenção é justamente o que orienta a muito bem intencionada crítica de cunho mais ou menos marxista que refuta todo sinal de romantismo e lirismo, considerando que fantasiar e sonhar é fugir da realidade. Drásticos, não percebem que a desfuncionalidade de sonhar e romancear é o que permite ver as cores e os sabores mais vivos; é o que preenche a vida de poesia e enriquece a imaginação. E que é da vida sem imaginação? Nem artista nem cientista trabalham pobres de imaginação – a invenção é prima-irmã da fantasia e necessária à vida. Este lirismo/ romantismo pode ser sim muito produtivo, enfim. Se for pra combater sonho ou fantasia que sejam aqueles que servem à manipulação e que aparecem aliados a interesses políticos e econômicos. Estes, é necessário reconhecer, temos aos montes. Surgem como modismos e tendências
fartamente vendidos pela publicidade, pelas novelas, revistas de moda, de celebridades, de esportes e mesmo pelos noticiários. A estes sonhos rasos coletivos o grande público adere e confere desmedida relevância. É notável, por exemplo, o potencial do imaginário humano quando se mostra incrivelmente interessado em armazenar e compartilhar dados relativos à carreira e à vida pessoal de jogadores ou celebridades. O imaginário se ocupa com o que se conhece.

O romantismo, o lirismo, o sonho e a fantasia, por fim, não devem ser de todo combatidos na arte. Pelo contrário, se consideramos que temos já sociólogos e antropólogos trabalhando em suas devidas funções, talvez o maior dever político da arte seja ocupar-se de produzir sonhos e fantasias cujos sentidos não sejam tão banais quanto as 
vendidas pela indústria cultural, nem percebidas meramente a nível abstrato e conceitual como uma certa arte já pretendeu; mas sentidos no peito e no estômago do público pensante.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Desencontro

Se Cézanne e Francis Bacon vivessem hoje, pintariam? Se pintassem apenas, certamente não seriam artistas tão interessantes. Suas obras se cobririam de outros sentidos, sentidos dados por um outro, novo, contexto – o de nossa época, claro.

Não creio que pintariam.

Seria um pouco como se, sei lá, para inverter a ordem das coisas, Jimmy Hendrix vivesse na época de Mozart: conseguiria 'atualizar' sua sensibilidade para impô-la de modo ativo frente à história? ou estaria fadado a viver em desacordo com o próprio tempo? Uma sensibilidade intensa como a sua, teria a chance de adaptar-se? ou emudeceria?

Não quero propor essências. Sei que não há possibilidades de um tempo qualquer ver nascer espírito que pertença a outro tempo. De qualquer forma, espírito de tempo algum é tão unívoco se os espaços são diversos. Como, aliás, são também diversas as subjetividades de um mesmo tempo.

Se não ha como pertencer ao tempo errado, há certamente como pertencer espaços errados - de tipo que constrangem nossas singularidades; espaços opressores. Felizmente, não se pertence a espaços; transita-se por eles. Assim, a pergunta deve deslocar-se do sentido temporal, para o espacial: quais devem ser as condições objetivas do espaço para que permita plena realização a expressões tão singulares do espírito?

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Eu virtual - O corpo além da carne e a arte além da arte.

I.Para além da matéria. 
É verdade que somos todos igualmente carne. Estes corpos físicos que permitem às pessoas na rua, em casa ou qualquer outro lugar que, percebendo nossa presença, nos reconheçam e identifiquem. Mas se nos identificam é que, claramente, a semelhança de nossa constituição guarda as particularidades que nos diferem um do outro. Assim, comuns e particulares, nos definimos incansavelmente por nossas diferenças: sou assim, não assado. No entanto, embora nossas particularidades devam estar inscritas todas em cada sulco de rosto, traço de mão, ou nervura de íris, ou ainda em nossos sabores e odores, sentimos que somos também o que não se vê de nós mesmos - algo além de nossa "mera" aparência. Pensamentos, memórias, desejos e idéias também nos constituem e, como particularidades que permitem nossa identificação, não cansamos de procurar torná-los perceptíveis. É assim que vestimo-nos procurando alguma misteriosa "coerência interna". Optamos por certos cortes e certas cores de roupas e cabelos em detrimento de outros. Tudo se revela mais ou menos informativo do que vai em nosso espírito revelando, talvez, aquilo que chamam "estilo". 


Mas o texto não é sobre moda. É, antes, uma primeira reflexão sobre como essa auto-imagem aparece projetada neste espaço virtual da internet. Posto de outra forma, este texto procura estabelecer uma analogia entre o espírito, ou esta imaterialidade/ invisibilidade humana, e o espaço da internet. A hipótese que me interessa investigar é a proximidade entre esse nosso familiar processo de "virtualização" da identidade e operações artísticas.

Comecemos considerando a insuficiência do próprio corpo físico – único, vulnerável e diversamente determinado – em tempos (pós/hiper/super modernos) que parecem exigir estarmos presentes para além dele. O corpo passa a ser entendido agora como uma limitação: ele estaria defasado em relação às demandas da vida e seria algo que a virtualidade, e a tecnologia de modo geral, deveria tratar de superar. O cenário sugerido pode parecer futurista/ ficcional, mas, se consideramos a popularidade de "redes sociais digitais" nesse início de século, temos que na verdade este é um fenômenos bastante presente e real. A despeito da alegoria já mencionada neste espaço do calígrafo que primeiro pousa a caneta sobre o papel e depois o percorre, de modo a sugerir um desenvolvimento pontual e linear, o corpo, fragmentado como a história e tudo mais na contemporaneidade, passa a ser pensado como rede, de modo sincrônico. Eu estou aqui, mas deve haver alguém falando comigo ali - no Facebook, no Twitter...


II. O invisível e o virtual


É pertinente considerar que estes fenômenos recentes não respondem exclusivamente a questões ou anseios da contemporaneidade. Mesmo essa nossa matéria mais densa, nossa própria carne, nunca está, nem nunca esteve, totalmente visível. Nossa visão do corpo sempre se dá a partir de um ponto e este corpo se revela sempre mais ou menos coberto; maquiado. Há sempre um lado da coisa que não se apreende: as costas de alguém que vejo de frente; o peito coberto...Tudo o que não se sabe é causa de alguma agonia. Querer ver, como querer dizer, é querer objetivar uma falta. O que é dado à sensibilidade de alguma forma reconforta o intelecto porque lhe dá parâmetros de avaliação. É, assim, do delírio da vontade de objetivação do impalpável e do pré-objetivo que se produz a arte. 


A verdade é que não estamos completamente cientes nem de nossa própria disposição física. Não nos vemos 24h por dia. Se me encontro agora sozinho, o que posso perceber de mim é tão somente algo de meus braços, minhas mãos com dedos não tão ligeiros percorrendo o teclado e a presença embaçada de algo de meu rosto emoldurando minha própria visão do mundo. Logo mais vou dormir, e quando a gente dorme a consciência que temos de nós não é nem de fato consciência, nem de fato a gente – não pelo menos esse corpo físico que as pessoas reconhecem, sempre parcialmente, quando perambulamos por aí; temos a consistência dos sonhos.


A criação de um perfil virtual aparece, nesse sentido, como que em resistência às limitações de um necessário corpo bruto que, naturalmente, ocupa um determinado espaço durante um determinado tempo. De maneira consciente ou não, procura-se condensar nesse ambiente virtual essa dimensão imaterial da própria existência de maneira mais ou menos livre das restrições impostas pela própria condição física. Poder-se-ia considerar que a virtualidade, portanto, responde ao drama existencial de não ser, por determinações biológicas, culturais, sociais e históricas, inteiramente livre, oferecendo alternativas, como que oferecendo liberdade (!). Não é acaso por exemplo a proliferação de perfis "falsos" e de pornografia: mais ou menos desligados de si mesmos e mais como "entidades virtuais", o que acaba por se concretizar das pessoas são suas próprias fantasias e devaneios, quase como ocorre em sonhos. A internet oferece um panorama desse imaginário contemporâneo - plural e caótico.


III. A representação ou apresentação de si


Para além da demanda do próprio modo de vida contemporâneo por uma presença "além do corpo", cabe considerar no processo de construção de perfis em redes sociais a satisfação do desejo de colocar-se à mostra, mais disponível ou acessível do que permitiria a unidade de nossos corpos. A identificação de nós mesmos nestes espaço é prazerosa na medida em que é uma forma de diferenciação pretensamente livre que permite ao outro o reconhecimento de nossas particularidades - ao menos aquelas que nos interessam ressaltar. Naturalmente, o processo é movido pelo desejo de uma representação com as quais se esteja confortável e que pareça adequada aos fins a que se presta.


Em resposta ao intimidante e quase obsceno "quem sou eu" de um Orkut ou semelhante, é comum que se recorra a uma citação. O que não deixa de ser revelador: admitir que o outro possa falar do que somos melhor do que nós mesmos significa reconhecer-se no pensamento do outro, identificar-se além de si, no outro. De imagem, no entanto, como que querendo sugerir nossa própria presença naquele espaço, vai geralmente a própria cara. Mas uma imagem da cara, não é a cara. Do contrário a representação ganha ares de apresentação. Seria cabível considerar aí, ao invés da virtualização do corpo, este quenos é dado, o processo inverso: algo como a corporização, ou materialização, do vazio virtual, o que supostamente garante maior liberdade.


Ora, escolher a imagem de um perfil é, como se vestir, fornecer dados sensíveis sobre os quais se farão as leituras dos outros sobre nós mesmos. Leitura que está longe de restringir-se à pura visualidade já que ela não é meramente retinal, mas reflexiva. Com isso, sabemos que diferentes imagens darão a entender diferentes sentidos e com isso entendemos, claramente, que um mero registro da carne, a definição de seus contornos, não é a própria carne, mas, no máximo, a ilusão de uma presença que por não sê-la - presença - é fatalmente limitada em sua determinação; é, por conseguinte, limitante. Já que enquanto o que não se vê da presença é precisamente infinito e inesgotável, o que não se vê de uma mera fotografia, nunca o é da mesma forma - a própria paralisia em imagem fotográfica do tempo no congelamento do movimento é, por definição, a apresentação de uma limitação. 


Os dilemas que se enfrenta na procura de marcar com alguma exatidão a própria existência para além (ou aquém) do visível, do dizível e, enfim, do objetivável, são muito próximos dos questionamentos relacionados às operações artísticas.


IV.Ambivalências da representação e as razões da arte


Se por um lado esta procura por uma justeza na representação ocasiona, como sugerido, uma aproximação natural da arte, cabe considerar, por outro, que essa operação não possui compromisso necessário com 'a verdade'. Afinal, a representação nunca será absoluta, como podemos chegar a pensar quando temos apenas da coisa uma idéia virtual, mas será, pelo contrário, sempre parcial, e mais ou menos abstrata. O caráter pretensamente absoluto que por vezes se atribui às imagens é muitas vezes responsável por enganos e seduções. Mas se por um lado aquela representação não pode evidentemente ser considerada verdadeira, o que se torna evidente se consideramos casos drásticos como o do gordo que se passa por loira, não deverá, por outro lado, ser considerada totalmente falsa: revelando de si uma idéia de materialidade muito distante de sua efetiva matéria, o autor sempre acaba por revelar, de modo ao menos alusivo, o invisível que também lhe constitui - desejo e vontade, por exemplo.


Se parece impossível distinguir, naquilo que se propõe visualmente, o que parece real, objetivo e palpável, de uma mera ideia, ou como os contornos do visível não são tão certos como comodamente gostamos de acreditar, é que a relação entre os termos envolvidos (subjetividade/objetividade, sensível/conceito, visível/ invisível) é sempre intrincada, paradoxal até. Natural, já que na confecção de um perfil nestas redes virtuais, queremos determinar sem limitar. 


A aproximação sugerida aqui entre operações artísticas e estas operações tateantes em que se busca uma mais ou menos contraditória justa medida da indeterminação de nós mesmos, procura evidenciar o potencial poético do exercício naturalmente crítico em que buscamos nos apropriar dos sentidos que propomos esteticamente, para que coincidam tanto quanto possível com a ideia que temos de nós mesmos, e/ou com nossos desejos. Esta consciência a respeito da forma como nos colocamos no mundo gera em maior ou menor medida um cuidado acerca do que se propõe esteticamente que é precisamente a potência revolucionária da arte. Esta consciência alargada nos levaria a buscar perceber criticamente o discurso da estética de gestos cotidianos banais, e com isso a própria forma como vivemos contemporaneamente, ou como utilizamos os espaços - virtuais ou não - de que a contemporaneidade dispõe.

Se por um lado, o que move o processo de construção de perfis virtuais é, grosso modo, a vontade algo existencialista de identificação e reconhecimento por meio da objetivação da própria subjetividade, por outro, não devemos ignorar a qualidade radicular da internet, assim como a finalidade comunicacional destas redes sociais. A plataforma que nos serve para marcar nossa individualidade e que certamente alimenta certa dose de egocentrismo, vaidade e futilidade, é também um interessante mecanismo que propõe certa noção de comunidade. É o que faz ver a admiração crítica a respeito do que estas empresas nos propõe esteticamente. Esta forma de admiração é geralmente convocada pela arte institucionalmente legitimada, mas minha sensação é que na realidade ela é mais urgente em nossa vida cotidiana do que em museus e galerias. Se é verdade que a arte em campo ampliado pode mudar a forma como vivemos, porque não começar com nossos perfis?