terça-feira, 9 de novembro de 2010

Notas sobre a razão na arte - o projeto construtivo brasileiro

Durante um período se considerou que arte tivesse mais relação com a natureza, e depois com as emoções e sensações, do que com algo como a razão. No entanto, movimentos modernos e contemporâneos como o construtivismo e o conceitualismo demonstram, pelo contrário, o predomínio da razão em detrimento até, em alguns casos, do sensível. Este ensaio identifica o projeto construtivo brasileiro como um importante objeto de estudo para a reflexão destas questões. Antes, porém, procurar-se-a esboçar uma retrospectiva histórica da maneira como o sujeito entende sua própria posição em relação ao mundo. Por razões óbvias devemos nos concentrar em pontos estratégicos permitindo um rápido panorama que deverá ao cabo, espero, justificar o alargamento do enfoque.

Consideremos de saída o longo período de vigência de um mesmo modelo de pensamento acerca da arte desde cerca de quatro séculos antes de Cristo, época de Platão e Aristóteles, até o século XVIII: a idéia da arte como imitação da natureza. Ainda que natureza pudesse ser entendida diversamente, às vezes dotada de um caráter divino, invariavelmente o que restava durante todo este longo período era pouco mais do que uma atitude contemplativa – venerativa. O artista se restringia a perceber sensorialmente a ordem da natureza - e se comprazer com ela no caso do belo, e temê-la, no caso do sublime (embora este último possa estar igualmente relacionado ao prazer, ele é mais comumente associado ao sentimento de terror).

Não que a relação do homem com a natureza fosse totalmente submissa. Desde o princípio da vida do homem como o conhecemos, o chamado Homo sapiens, ele soube contornar e manipular a natureza conforme suas necessidades. Construiu ferramentas, domesticou animais, cultivou plantas, construiu moradias e afetou naturalmente a ordem do mundo, alterando-a – artificializando-a. A natureza ou a “vontade divina”, no entanto, era em certos aspectos soberana e determinante de certas verdades - verdades inquestionáveis. À razão caberia apreender essa ordem.

Para voltarmos à esfera da arte consideremos, durante o renascimento, o surgimento das chamadas artes liberais, quando o artista passa a trabalhar para a corte e, enobrecido, abandona as guildas e a posição de artesão que nelas ocupava. Como “douto”, passa a ser valorizado tanto pelos conhecimentos históricos e técnico-científicos necessários para a adequada apreensão do mundo natural, quanto por um suposto “dom” ou “inclinação natural” que seria fruto de um impulso ou de uma inspiração divina. É o reconhecimento no homem daquela natureza que até então lhe parecia somente externa.

O lançamento da grade perspectiva sobre o mundo ao mesmo tempo em que demonstra o desenvolvimento de uma maneira exata de apreender geometricamente a natureza, demonstra a valorização do homem, o ponto a partir do qual ela é observada. Este fenômeno também pode ser observado no estudo da anatomia - a verificação da ordem do mundo pela razão torna o homem mais consciente de si mesmo. Mas, ainda que obras assinadas viessem se tornando gradualmente mais comuns, a valorização do sujeito é somente parcial neste momento - artistas que se iniciavam buscavam imitar os estilos dos pintores já consagrados: falava-se em pintar, por exemplo, “à maneira de Rafael” ou “à maneira de Giorgio”. Se este fenômeno depõe contra a personalidade daqueles artistas que necessitavam subsumir seus estilos ao dos grandes mestres, ele conta, por outro lado, certamente a favor da valorização dos estilos muitos particulares destes mesmos grandes mestres. Assim, deve ser legítimo considerar-se que o fruto mais precioso do Renascimento tenha sido a gradual valorização do indivíduo – fenômeno obtido pelo próprio desenvolvimento da razão. É quando se assimila verdadeiramente a idéia de que a natureza, ou o que se entendia como determinação natural ou divina, poderia não somente ser apreendida através dela, mas questionado. Não é acaso o surgimento da Reforma Protestante no século XVI, por exemplo.

Esta valorização gradual do indivíduo vai permitir já neste período o surgimento de obras que evidenciam um certo sentimento de inconformidade, ou não adequação, do homem com relação à natureza. Este fenômeno pode ser especialmente percebido no período de crise e instabilidade que seguiu o Renascimento (além da reforma protestante também pesam a revolução copernicana e o saque de Roma ocorrido em 1527 por tropas de Carlos V da Espanha). A harmonia e o equilíbrio de antes já não se faziam mais possíveis. Como bem demonstram as obras de artistas como Pontormo, Parmigianino e El Greco, o Maneirismo foi o primeiro movimento artístico a romper as barreiras da representação do mundo natural - o primeiro, portanto, em que se percebe com evidência que o homem estava em desacordo com a ordem da natureza. Este período é por isso marcado pelo anti-classicismo e pelo anti-naturalismo.

Mas vai ser no século XVIII que a valorização da subjetividade na arte chega ao auge - fenômeno que não acontece em detrimento da natureza mas, como deve demonstrar a própria definição kantiana de gênio, é a própria valorização da natureza no homem: “o gênio é a disposição inata do espírito pela qual a natureza fornece as regras à arte” (CFJ, 1790, p. 138). Ou seja, gênio é o homem através do qual a natureza age livremente. Não caberia tanto aqui problematizar esta pretensa espontaneidade romântica do artista “criador”¹, mas destacar neste período uma valorização do homem que não ocorre em detrimento da natureza, mas que, pelo contrário, pretende acontecer junto a ela. Claro que, mais conhecido pelo caráter "irracionalista" - intuitivo, subjetivista, egocêntrico, apaixonado e sentimentalista - o sujeito romântico acaba tomando determinações culturais por "natureza", sofrendo-a passiva e deleitosamente. Daí que a crítica costume conjugar o termo "romântico" com ingenuidade e alienação - traços do caráter que passaria a partir de então a definir de maneira quase estigmatizante a "excêntrica" figura do artista. Cabe considerar, no entanto, que em alguns momentos ele chegou a ser crítico com relação à cultura. Um exemplo disso são os últimos trabalhos de Goya.

Assim, se mais tarde o realismo explicita um olhar menos encantado ao mundo, é no modernismo, finalmente, que se observa um verdadeiro tensionamento da relação entre homem e natureza – sujeito e objeto. É que, consciente de si mesmo e de sua posição no mundo, o indivíduo passa a questionar a realidade e age da maneira que acredita ser mais adequada – é a época dos manifestos, lembremos. Assim, ao passo em que alguns movimentos, à moda romântica, insistem na valorização da natureza no homem propondo um retorno a ela (fenômeno com o qual se deve relacionar a liberação de figuras historicamente reprimidas como a criança, o louco e o primitivo – figuras em que a natureza humana poderia ser percebida em estado menos cultural e portanto “mais puro”), por outro lado, outras movimentações vão insistir no potencial da razão – e da cultura - para criticar ou remodelar o mundo.

É, finalmente, onde podemos situar o projeto construtivo brasileiro. Se é verdade que antes do concretismo a produção artística brasileira revelava algum “atraso” com relação às novas movimentações internacionais por estarem todas, grosso modo, voltadas para a busca de uma identidade nacional, não deve seguir-se que estava alheio ou independente deste processo mais geral que tentamos delinear aqui. Também no Brasil os indivíduos começavam a pensar com suas próprias cabeças e, bem ou mal, questionar os esquemas tradicionais de representação – como bem demonstram as frequentes polêmicas com a crítica ainda embebida de valores classicizantes. O fato é que o concretismo foi um salto – um salto contrário à qualquer esquema representativo e em direção ao racionalismo na arte, assim como ao reestabelecimento de um lugar social para a arte – ela deveria “servir de modelo à própria construção social”. Há nela, como escreve Ronaldo Brito, uma “ânsia de superar o atraso tecnológico e o irracionalismo decorrente do subdesenvolvimento”. Recusando a metafísica, a intuição e qualquer suposta transcendência do trabalho artístico a arte passa a ter como modelo a ciência – em especial a matemática. Assim, embora outras movimentações como o abstracionismo lírico ou informal já tivessem deixado totalmente de lado a representação da natureza, (a pintura agora passa a ater-se a suas próprias especificidades: o plano e o material pictórico), o maior diferencial do movimento seria o geometrismo. Os princípios da Gestalt, por exemplo, passam a fornecer os parâmetros para a formulação das obras construtivistas. Trata-se, enfim, do auge da crença na razão no meio artístico brasileiro.

O neoconcretismo por sua vez, como anuncia o manifesto, considera “perigosa” a exacerbação racionalista da arte concreta e “nega a validez das atitudes cientificistas e positivistas em arte e repõe o problema da expressão”. Assim, embora em muitos casos a geometria permaneça presente, é o orgânico que começa a insinuar-se de maneira mais ou menos direta: ao passo em que se recusa a teoria da Gestalt, aproxima-se do pensamento fenomenológico de filósofos como Merleau-Ponty.

Consideremos a pintura “Estruturação com elementos iguais” (1953) de Luiz Saciloto e os “Objetos ativos” (1960) de Willys de Castro (ver figuras). O interesse pela geometria em ambas é completamente diverso. Na primeira o que se propõe são basicamente exercícios óticos. Percebe-se repetição, coerência, constraste, equilíbrio, sequencialidade e continuidade das formas. É o artista tornado “informador visual, submisso de certo modo às leis estruturais que regem a prática estética na sociedade burguesa”. Sem maiores inserções sociais a obra limita-se a um esquematismo formal ou um simples jogo perceptivo e demonstra a luta construtivista pela racionalização do ambiente. Já os objetos ativos, de Willys de Castro, recusam esse reducionismo. Quase ilusionística ela provoca uma inquietação de ordem sensível – não meramente racional. No neoconcretismo, não é tanto o mundo que precisa ser alterado e ordenado pela razão soberana humana. Levando-se em conta a posição do sujeito, a ênfase passa a ser dada não tanto no objeto (ver “Teoria do não-objeto”, de Ferreira Gullar), imposto ao mundo como ordem, mas na relação - no atravessamento do objeto pelo sujeito e do sujeito pelo objeto, como sugeria Merleau-Ponty. Enquanto na obra de Willys de Castro esse atravessamento é sutil, em alguns momentos ele é literal - e intenso - como no caso da obra de Helio Oiticica e Lygia Clark.

A utopia construtiva ao revelar, como o diz novamente Ronaldo Brito, “uma crença ingênua e afinal capitalista na tecnologia em si”, tendendo mesmo para uma “visão tecnocrata da cultura” é, em última instância, arrogante, como o é, aliás, a própria lógica de funcionamento deste sistema – capitalista-tecnocrata. Se, por sua vez, pode ser considerado um problema do neoconcretismo o fato de que foi “opaco politicamente e operava nos limites estabelecidos para a prática da arte na sociedade sem uma visão crítica de sua inserção social” como considera o mencionado crítico, o posterior surgimento de uma arte crítica, política e insersiva, como a arte postal, deve explicitar que, como toda a história - da arte ou não – estes fenômenos não se deram de maneira isolada, mas no interior de uma cadeia. O neoconcretismo não seria possível sem o concretismo, nem boa parte da produção contemporânea mais significativa seria possível sem ambos.

Um problema a se considerar é o da especificidade da obra de arte após justamente este período de inserção – ou ainda, a consideração da maneira como essa inserção ocorre ou deixa de ocorrer. A crítica institucional no modelo de algumas das propostas de Hans Haacke, por exemplo, muito preocupadas com o "fator político", não reafirma aquela crença arrogante na razão no modelo do concretismo e ignora o caráter existencial defendido pelo neoconcretismo? Como evitar essa soberania da razão mantendo um desenvolvimento humano não antagônico à natureza (inclusive à natureza humana), como o fazia o Romantismo, mas sem ser subjugado pela própria cultura, travestida de natureza (sem alienação e ingenuidade, portanto)? Entre uma razão que se limita a verificar a ordem do mundo - e a se comprazer com ele, ou temê-lo - e uma razão autoritária que o violenta insistentemente, o neoconcretismo se consolida como uma alternativa, talvez justamente por sua orientação não tanto teórica quanto fenomenológica, no mínimo interessante e, esperançosamente, ainda fértil.


¹ Ver por exemplo "A falácia expressiva" de Hal Foster. Em Recodificação. Arte, espetáculo, política cultural. Casa Editorial Paulista, 1996.

Figuras:

1.
Luis Sacilotto. Estruturação com elementos iguais, 1953.


2.

Willys de Castro. Objeto ativo de 1960.


3.

Willys de Castro. Objeto ativo de 1962.


domingo, 7 de novembro de 2010

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Tem se tornado quase uma obsessão pra mim, pensar em todas as coisas colocando-as em relação a um sistema binário descrito por inúmeros termos "inconciliáveis e ao mesmo tempo indissociáveis" como racional/sensível; consciente/inconsciente; cultura/natureza, forma/conteúdo, etc. É que o 'sistema' tem funcionado...acho. Pode estar se tornando uma quase paranóia, ("paranóia", "obsessão", não deve ser boa coisa) mas buscar o dentro do fora, a profundidade da superfície, o conteúdo da forma, assim como o inverso disso tudo numa espécie de jogo reflexivo sem fim, tem sido delicioso. Ficar aqui dizendo isso pode parecer meio pedante, mas é que é uma 'descoberta' recente; e só eu sei como quando escrevo - e depois leio e releio, discutindo autistamente comigo mesmo - processo e reprocesso estas questões de modo que elas acabam se tornando altamente determinantes dos rumos que tenho tomado fora daqui. Aliás, esse esquema dicotômico tem se insinuado pelo menos na conclusão de quase todo texto publicado por aqui e meu leitor deve ter a sensação de que me repito. De fato me repito - é que estou assimilando estas idéias.
Em uma aula de filosofia, por exemplo - em que surjo como intruso quase completo já que não sou um aluno regular da área nem nada do tipo -, além do tema já normalmente absolutamente viajado e viajante, me interessa pensar nas razões conscientes ou não da expressão corporal e do gosto duvidoso do professor que fala de dentro de uma blusa de incômoda gola alta; e da cor, do penteado e do corte de cabelo de uma aluna, passando pelas razões da infantilização dos apaixonados, da super preocupação de algumas mães, da revolta de alguns filhos, da repetição de certos padrões de relacionamentos, do resultado das eleições, dos falsos moralismos, dos comportamentos agressivos incitados pelo consumo excessivo de álcool, das inclinações de minhas próprias letras no caderno, da constelação de pintas no braço do meu colega logo em frente; é claro que tenho dificuldades em me concentrar...já nem sei bem sobre o que estou falando!
Me disseram que se chama "impulso epistemofílico"; e que o meu é muito grande. Não fosse esse sistema de polaridades que me permite agora em alguma medida dar conta do mundo (!), seria provavelmente patológico (agora é apenas megalomaníaco). Ele aparece como uma inconformidade enorme com a ignorância, minha própria ignorância, com relação à vida e todas as coisas nela. A sensação deve ser como aquela do 'sublime' - tanta história, obra, informação e experiência mais ou menos à disposição que o curto trajeto deste ponto que é minha própria vida presente com "todas" suas experiências, parece insignificante, quase me tira o ar. Se não me visse como parte dessa zona toda (graças a esse esquema - sujeito/objeto, no caso) eu provavelmente não encontraria meu lugar - murcharia, inerte. Mas como todo lugar e nenhum lugar é meu e não meu, eu opto por me construir a partir dessas relações, permanentemente, até morrer, enrugado, "sabido" e querendo saber mais, de preferência.
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Não estou bem certo de quem, mas sei que já ouvi críticos e artistas admitindo que educaram-se ou educam-se em público. De início isso me causava algum estranhamento. Decerto achava que antes de publicar um livro ou expor uma obra deveria-se estar pronto. Mas nunca se está pronto, certo? O processo é que pode, ou não, ser interessante.

"isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além"
Paulo Leminski

Boto fé! ;)
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domingo, 29 de agosto de 2010

Razões pressupostas - da ciência à natureza

Este texto pretende desmembrar alguns pontos do post anterior. Principalmente com relação às razões da natureza, tema ali apenas sugerido.
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Quando com os devidos estudos científicos se compreende as razões de fenômenos como o eclipse solar, o ciclo menstrual feminino e o crescimento do cabelo e das unhas - mesmo algum tempo após a morte -, estes fenômenos, aqui escolhidos de maneira totalmente aleatória, apontam para a lógica de processos biológicos, químicos ou físicos e, devidamente compreendidos, deixam de dar margem para formulações suspeitas, esotéricas ou místicas, que pudessem justificá-las; é que por meio de observação empírica e o exercício de uma razão especulativa nosso pensamento se confronta com o fenômeno buscando identificar a lógica que o constitui - pensando-o; Ao revelar as razões, como nestes casos, a ciência acaba assumindo para si certo caráter "decodificador" do mundo. Da queda da maçã à produção de obras de arte,  projetam-se razões - conjecturações - para a existência de todas as coisas que podem ser experienciadas. Esta verificabilidade de sentidos em toda coisa aponta para um certo ordenamento da natureza e para uma noção de "perfeição" que, de uma maneira geral, sugere uma razão anterior às nossas capacidades de conceituação. Não à toa alguns pensadores, se estou certo Espinoza era um, tenham feito poucas distinções entre Deus e natureza.
Depreende-se destas considerações que, da mesma maneira que em outros tempos certos fenômenos pareciam mistérios insondáveis, muitas das coisas que hoje nos parecem ocultas, pelo desenvolvimento de uma razão lógica - nas ciências -, cedo ou tarde - se houver tempo para tanto - serão logicamente justificadas (ou justificadas de maneira lógica). Assim, poder-se-ia considerar que tão certa  quanto está que 1 + 1 são 2, a ciência segue na cola desta suposta inteligência anterior à nossa que rege o funcionamento do mundo; "no rastro de Deus".
Mas ao passo em que sua metodologia meticulosa é lenta, os "mistérios" que se procuram decifrar, como o câncer e a AIDS, não raro se revelam implacáveis. Assim, diferente de uma simples checagem da ordem lógica do mundo, o que as ciências promovem são maneiras de contorná-las ou conformá-las aos nossos propósitos. Toma-se as rédeas da suposta inteligência do mundo e faz-se com que ela atue de maneira mais favorável às nossas necessidades e desejos. Assim manipula-se a lógica da natureza (ou de Deus, para conferir alguma dramaticidade ao discurso) e criam-se subterfúgios mais ou menos drásticos: contra a fome: o cultivo e desenvolvimento de ferramentas para caça; contra a chuva e o frio: uma casa com teto e coberta; contra o crescimento demográfico e os riscos de contaminação: camisinhas; contra as inconvenientes impotência sexual masculina e sangria mensal feminina: pílulas; contra um tumor: um procedimento cirúrgico; contra nossa incapacidade de voar: aviões; e assim por diante.
Decorre, naturalmente, uma transformação radical da ordem do mundo e o surgimento da necessidade de reagir contra os efeitos negativos, previstos ou não, de eventuais "soluções"; o que acaba por gerar uma cadeia mais ou menos caótica de fenômenos não exatamente naturais (ou "de Deus";). Assim, atuando contra a lerdeza de nossos passos, a necessidade de locomoção acelerada e individual culmina na produção de veículos que, por nossa necessidade de lucro (a competitividade exige diferenciação sempre crescente de modelos), acabam por contaminar e entupir as cidades. Por exigirem petróleo, promovem guerras que, por sua vez, alimentam a indústria mais lucrativa do mundo, a indústria bélica. Ou a necessidade de, contra a fome - para manter o esquema-, desenvolver-se uma indústria pecuária que acaba por revelar-se um negócio tão lucrativo que justifica haver no Brasil maior quantidade de gado do que de gente (o mesmo com porcos) e que também determina o produto de maior exportação do país, a soja, direcionada não para a alimentação de pessoas, mas do gado - como ração - para a posterior alimentação de não tantos quanto seria possível se esta enorme quantidade de terra necessária para o pasto (uma demanda, aliás, sempre crescente e em nome da qual é feito boa parte do desmatamento na amazonia) e para o plantio da soja, tivesse sido utilizada para o cultivo diversificado de frutas e hortaliças voltadas diretamente para o consumo humano. A indústria do consumo de carne acaba por se revelar insustentável e, de maneira paradoxal, promotora da fome no mundo.
Quer dizer, é óbvio que a intervenção cirúrgica para a extração de um órgão tomado por tumores é um exemplo que justifica a drasticidade do procedimento - a origem de toda esta transformação da ordem do mundo, como este exemplo bem ilustra, é em essência, fruto de uma necessidade de viver bem, melhor ou mais e é, portanto, genuinamente humana. Mas é necessário ter em mente que nem sempre as necessidades e desejos que determinam as operações humanas são tão dirigidas a um aumento de expectativa e qualidade de vida, de modo que as coisas começam a se desenvolver de acordo com interesses muito particulares e mesquinhos - geralmente, o lucro de alguns poucos.
O que me parece motivador neste quadro é perceber ao longo da história o surgimento de linhas de pensamento que não entendem a necessidade de atuação do homem à favor da vida como necessariamente "contra" a natureza. É assim, por exemplo, a prática de algumas medicinas consideradas alternativas, como a homeopatia, segundo a qual, me parece, - para voltar ao exemplo do tumor - a extração de um órgão afetado nem seria uma alternativa. Procuraria-se entender a lógica do surgimento do tumor, para operar com ela, e não contra ela. Não à toa alguns sintomas se acentuam no tratamento homeopático.(É, enfim, este modelo de razão, mais próximo da lógica de funcionamento da natureza que pretendi propor, de maneira talvez muito vaga, no último post.)
A questão é que o dissecamento do mundo pela razão, além de revelar-se por diversas vezes autoritário, violento e arrogante, é, antes de tudo, afirmativo de uma série de concepções dicotômicas: mente-corpo; racional-sensível; homem-natureza; em que geralmente se subjuga um pelo outro. Mas dotado de uma razão que insiste em conferir para, se julgar necessário, contornar e manipular a lógica do mundo e de si mesmo, parece perfeitamente natural que o homem tenha desenvolvido tais noções conflitantes. O que pode pensar a garota desavisada de sua primeira menstruação? Ou de que maneira a excitação sexual, que é a manifestação de uma pulsão fundamentalmente animal, não conflitaria com o pensamento caso explicações razoáveis não pudessem ser obtidas do fenômeno? A tendência natural é dar conta do ocorrido através do entendimento; até que isto ocorra o instinto animal é fundamentalmente oposto e conflitante à razão. Em casos como o da homossexualidade o entendimento pode nunca chegar a ocorrer simplesmente porque as razões obtidas podem provar-se invariavelmente insatisfatórias. Do mesmo jeito que se prova insatisfatória a repressão. A natureza resguarda suas razões. Não é sempre que algo que não se consiga compreender precisa ser combatido.
Há na história da filosofia, principalmente pós-iluminista, uma tendência chamada irracionalista que desconfia dos alcances da razão lógico-discursiva de qual se utiliza a ciência. São pensadores que apontam, por exemplo, para a sensibilidade, a intuição, a vontade, a instintividade e o inconsciente como outras maneiras de conhecer. Como tal, não deve ser tanto o caso de que se esteja propondo que algumas razões não devem ser procuradas, ou que se deva permanecer em alguns aspectos satisfeito com nossa condição animal limitada, ou ainda que algumas coisas simplesmente não possuem explicação (talvez seja sempre uma questão de tempo para que a ciência continue a dissecar permanentemente o mundo desvendando estas coisas que permanecem ocultas de modo a torná-las manipuláveis). Trata-se mais de propor que se leve em conta não apenas uma parte do homem, mas ele inteiro. Um desenvolvimento não antagônico ao da natureza (como propus que seja o caso da homeopatia), torna-se-ia então natural. Outras faculdades, como a intuição, de alguma maneira se adiantam à razão, revelando outros sentidos que nossa razão desconhece. Estes pontos precisam ser levados em conta.
Ainda que a estas alturas acredite-se totalmente emancipado, a lembrança de princípios não racionais deve lembrar que o homem é, antes de um Deus capaz de alterar a ordem do mundo, natureza. Se a cultura determina como comemos ou o que comemos, é ela - a natureza - que determina o fato de que sentimos fome. Não somos tão diferentes dos animais; e por mais que hoje a eletricidade nos ilumine a noite, o dia ainda se apaga por um período próximo ao de nosso necessário sono. Ainda somos feitos das mesmas partículas do universo e não devemos precisar atuar contra ele, ou pelo menos, não devemos precisar nos afastar tanto dessa inteligência anterior para a qual ainda nos faltam tantos conceitos.

sábado, 21 de agosto de 2010

O tempo, o animal e os sentidos da razão -Do ponto à poesia

Questionando o sentindo da maneira como vive-se mal o hoje em busca de um eterno amanhã, há algum tempo considerei que devêssemos aprender com os animais (aqueles que pastam, por exemplo) o valor do presente; afinal, o futuro, como o passado, não existem, de fato; o que existe, o tempo da conjugação do verbo revela. O futuro (possivelmente, o próximo segundo ao menos) existirá; o passado, existiu; e ambos, enfim, se realizam apenas na intangibilidade do presente; e assim, é só este instante que temos.
Depois considerei que em muitos momentos, principalmente quando em "bando", de fato somos, neste aspecto, como os animais, e isso acaba se revelando um problema.
Obviamente devemos conferir alguma importância à qualidade da vida presente porque de fato pode nos faltar um amanhã. Mas se de maneira mais drástica carecemos de noções de passado ou futuro, nos entendemos como um ponto apenas e assim somos incapazes de construir maiores sentidos. Nossa instintividade ou intuição nos orientaria apenas para a precária manutenção daqueles instantes -o que deve significar que não nos converteríamos necessariamente em baderneiros, mas provavelmente em seres impulsivos, imprevisíveis e, ao mesmo tempo, despreocupados ou ingênuos demais para executar qualquer projeto que pudesse conferir algum sentido à nossa existência, garantir alguma qualidade de vida, ou mesmo mantê-la. Pouco conseqüentes, como a mariposa que procura até a morte o calor da lâmpada, acabaríamos cometendo o que se considerariam "irracionalidades" contra nós mesmos ou outros de nossa ou diferentes espécies.
Mas, devemos concordar, animais não racionais não cometem uma fração das atrocidades que cometemos. O que nos justifica?
Dotados de racionalidade, apreendemos a passagem do tempo e somos capazes de, nele, construir sentidos; Guardamos memórias de um passado - somos capazes de entender nossa situação como resultado de um processo histórico pessoal e social - e somos capazes de projetar um futuro, de modo que deixamos de nos entender como um ponto e nos convertemos em linha. E, como são escolhas que definem o percurso de uma linha - como bem demonstra o calígrafo -, são elas que permitem a construção de sentidos.
O problema é que, se cometemos atrocidades, nossa racionalidade, por paradoxal que seja, não deve ser tão inteligente assim; os sentidos que construímos freqüentemente se revelam pouco sensatos, o que implica na óbvia constatação de que temos feito más escolhas. Pudessem algumas espécies construir sentidos, teriam chegado à conclusão que teriam de se livrar da nossa, para que se preservassem. (Talvez, por excesso de maus sentidos, ainda nos encarreguemos desse fim.)
Enquanto ainda há tempo, concluo que não é tanto que devêssemos aprender com os animais sobre o presente - o que de maneira drástica significaria a negação da validez da construção de sentidos pelo uso da razão- mas antes, que devemos aprender com eles a construir melhores sentidos; inclusive aqueles que nos permitam preservá-los e a nós mesmos.
Se por um lado a sugestão reafirma a já antiga e algo falida fé na razão, ela deve, pela inspiração animal, subtrair a mesquinharia e arrogância que são, em grande parte, intrínsecas ao modelo tradicional.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

O prazer na arte

A não existência de uma definição consensual do que seja arte não é segredo. Nem impedimento para que sejam realizadas a todo instante avaliações com relação à qualidade e à legitimidade das obras propostas como arte. Naturalmente, por essa sua indefinição mesmo, os critérios utilizados nestas avaliações são diversos. E foram também diversos em diferentes épocas. Alguns elementos, no entanto, permaneceram bastante centrais, de modo que, segundo a reivindicação de muitos autores, sua vigência pudesse ser verificada no decorrer de toda a história da arte. Foi assim com as noções de gosto e prazer, com as quais apenas recentemente, durante a passagem da arte moderna à contemporânea, pudemos verificar movimentos de ruptura. Mas, com maior ou menor propriedade, insistimos muitas vezes em considerar o prazer que determinadas obras proporcionam ou deixam de proporcionar, como um critério válido para a avaliação da arte, e invariavelmente dizemos que gostamos ou deixamos de gostar de determinadas obras. Se ao menos dessa forma a questão sobrevive, deve ser pertinente que se façam algumas observações de modo a chamar atenção para a alteração da forma pela qual prazer e gosto podem ser pensados na contemporaneidade. O que se pretende com a investigação da questão é uma revisão da noção de experiência estética, e da possibilidade de reiterá-la como elemento central à arte.

Há cerca de dois mil e quatrocentos anos, como revela Platão em Hípias Maior, a obra de arte era avaliada principalmente de acordo com a função que cumpria. Assim, podemos considerar que o bom desempenho da função a que a obra se destinava era tido como prazeroso¹. Mas, como teorizado mais tarde por inúmeros pensadores, para além deste prazer relacionado ao bom desempenho da obra, o prazer oriundo do trabalho artístico guardava especificidades correlatas ao prazer da contemplação da natureza. As artes eram, assim, atividades de alguma maneira distintas das demais. Será apenas no século XVIII com o advento da Estética que esta dimensão se fará verdadeiramente consciente - e será, como veremos, absolutamente exacerbada; resulta daí o reconhecimento de um valor na arte "em si mesma" (poderíamos falar do reconhecimento do desinteresse e da "finalidade sem fim" que sempre existira na arte, o valor que, para além de todo uso, ela possui "em si própria"² desde as pinturas das cavernas de Lascaux e das estátuas e cerâmicas gregas até as obras de cunho religioso pintadas pelos "grandes mestres" europeus), e da elevação do estatuto da experiência propiciada por uma obra à elemento definidor do que é ou deixa de ser arte. Para a contemporaneidade, o fato de que tenha-se falado desde o princípio da experiência estética em termos de "prazer" ou "deleite", torna-se um problema.

Ao pretender distanciar-se da questão do gosto, a arte deve aproximar-se daquele legume que aos olhos da criança parece estranho, ainda mais quando a mãe diz que é necessário que coma, independente do fato de não gostar, "porque faz bem". Estamos sempre preocupados com o acesso das pessoas às obras de arte (estamos, certo?), mas por que é que a arte é boa ou "faz bem" pra alguém? Obviamente esta é uma questão que não se colocava quando ela possuía uma função prática a exercer. Nem tanto durante o período em que o "belo" permanecia uma questão central, já que nesse caso ela proporcionava prazer, e o prazer, como se sabe, é um interesse natural. O valor da obra era o de sua própria contemplação, do próprio deslumbre que ela -a obra - era capaz de proporcionar. Hoje toda coisa quer ser artística, mas apenas na medida em que pretende ser bela e deslumbrante, ou capaz de proporcionar o que quer que se entenda como uma 'experiência estética'. Resulta daí que nosso entorno encontra-se totalmente saturado pelas produções de setores interessados em gerar este deslumbre, como é o caso da publicidade, do design e da moda. É um tanto quanto inconcebível, para nós, imaginar o que era a apreciação de um retrato, uma imagem paralisada e pomposamente emoldurada na parede, em um período anterior à fotografia. O prazer da arte durante este período está certamente relacionado a este poder de fascínio que deveria exercer sobre as sensibilidades. É verdade que uma capela sistina, e uma poderosa orquestra sinfônica, por exemplo, ainda exercem algum poder dessa ordem, mas estamos historicamente afastados e nossa apreciação hoje é totalmente outra. Hoje, a expectativa de obter com obras de arte algo como deleite imediato revela-se frustrante.

A "experiência estética", embora tenha surgido no século XVIII foi, como sugerimos, “provavelmente praticada pela maioria das pessoas em quase todos os períodos da História” (Harold Osborne. Estética e teoria da Arte) e, embora nunca tenha tido uma conceituação consensual, era, como se costuma descrever, agradável, prazerosa, afetiva e "válida por si mesma". O crítico Walter Pater, por exemplo, dirá em 1877 sobre as pinturas: “as qualidades essencialmente pictóricas precisam, antes de tudo, agradar aos sentidos, deleitá-los de maneira tão direta e sensual quanto um fragmento de cristal veneziano". De maneira semelhante, mas já apontando para um sentido transcendental, quase místico, Clive Bell defendia em 1913 que "A arte nos transporta do mundo das atividades humanas para um mundo de exaltação estética. Por um momento, somos isolados dos interesses humanos; nossas esperanças e recordações são interrompidas; somos erguidos acima do fluxo da vida". São críticos formalistas, como era também o mais conhecido crítico do século 20, Clement Greenberg. Embora o aspecto "formalista" seja o mais ressaltado da teoria destes pensadores, o interesse da crítica formalista em geral pela forma era oriundo de um desejo de objetividade crítica. O que realmente lhes interessava era que as obras produzissem uma experiência que fosse satisfatória, um tipo de experiência “válido por si mesmo” e que “não podia ser obtido a partir de nenhum outro tipo de atividade” (Clement Greenberg. “Pintura Modernista”). Greenberg chegará a considerar que o modernismo “tende ao valor estético, o valor estético como tal e como um fim último” (“A Necessidade do Formalismo”)

Mas, ainda na primeira metade do século XX, uma tendência bastante diversa começa a se anunciar; fenômeno que se evidenciará somente durante os anos 60 e 70.  Um exame minucioso das questões que interessavam a estes artistas foge em parte aos propósitos deste texto. Grosso modo, elas estavam relacionadas a uma reação ao período em que a arte esteve, como se convencionou dizer, distante da vida - isolada em museus e galerias e restrita a um circuito muito limitado de especialistas ou colecionadores. Nos interessa considerar especialmente que foi Marcel Duchamp, figura chave para a reflexão aqui proposta, a grande referência para este período em que se viu a necessidade de que a arte fosse crítica com relação a estas instâncias - para que elas deixassem de ser reguladoras, ou determinantes, da maneira como a arte vinha se realizando. Duchamp era conhecido principalmente pela sagacidade de seu pensamento, pela irreverência, pelas polêmicas de suas propostas, mas também pelo interesse em negar abertamente qualquer prazer estético que sua obra pudesse propiciar: "Um ponto que desejo muito esclarecer é que a escolha destes ‘ready-mades’ nunca foi ditada pelo deleite estético" (“A Propósito de Ready Mades", 1961). Mais tarde, meio em tom de zombaria, acrescenta: "Eu joguei o urinol nas suas caras como um desafio, e agora eles o admiram por sua beleza estética" (Cartas de Duchamp a Hans Richter, 1962). Suas obras, assim como a de muitos artistas pertencentes a movimentos que se seguiram, como o minimalismo, a pop-art e a arte conceitual, críticos formalistas como Clement Greenberg e, de maneira geral, todos os que valorizavam a experiência dos sentidos na apreciação da obra de arte, tiveram alguma dificuldade em acompanhar - ou as refutaram completamente.

As razões do artista, conforme nos conta, estavam relacionadas a uma revolta com o fato de que toda obra a partir de Courbet parecia interessada em explorar tão somente o lado físico da pintura (1): "Não se ensinava nenhuma noção de liberdade", indignava-se (H. B. CHIPP, 1999). Duchamp dizia que a arte deveria voltar-se de uma "expressão animal" para uma "expressão intelectual" - ela deveria voltar a estar "a serviço da mente". Certo que seu conhecido urinol (2) assim como qualquer outro de seus ready-mades não pode ser considerado capaz de "tocar", "comover" ou proporcionar algum prazer, ao menos não nos moldes da arte de até então. As proposições de Duchamp pedem uma percepção ampliada - a assimilação da apresentação de um objeto comum no interior de um espaço expositivo - o reconhecimento do contexto; seu maior efeito foi, certamente, o da desestabilização pelo próprio estranhamento da proposição. O interesse maior do artista, sem dúvida, era estimular o pensamento pela frustração da sensibilidade. Como considerou Arthur Danto, Duchamp “abriu para sempre as fronteiras entre arte e vida” (Arthur Danto, “Marcel Duchamp e o fim do gosto: Uma defesa da arte contemporânea”) escancarando a possibilidade de utilização de qualquer material para que o artista dissesse o que quer que pretendesse dizer (CHIPP, Teorias da arte Moderna p.399). A questão parece surgir quando, considerado o artista mais influente do século,  procedimentos semelhantes àqueles utilizados pelo artista tornam-se rotineiros. O estranhamento gerado pela obra de arte acaba tornando-se corriqueiro e a perplexidade, outrora fundamental, acaba reduzida a uma sensação vazia de banalidade ou engano (como bem demonstra a revolta de críticos como Affonso Romano Sant'Anna); É que o sentido destas obras não pode ser buscado meramente na sensação imediata que proporcionam.

Quer dizer, é verdade que propiciar algum tipo de fascínio sensível permanece sendo fundamental para alguns artistas contemporâneos, tais como Anish Kapoor, Bill Viola e Wolfgang Laib (3); ou que a perplexidade gerada pelo impacto sensível permanece constituindo a essência da poética de diversos artistas contemporâneos, freqüentemente polêmicos, tais como Stelarc, Orlan, Herman Nitsch, Damien Hirst e Abramovic (4), mas não se poderia dizer que o mérito das obras destes artistas reside meramente no arrebatamento ou impacto emocional que eventualmente geram, ou apenas na maneira como "tocam" seu público de maneira imediata. Está longe de ser um interesse, especialmente de artistas como estes últimos, que suas obras sejam propriamente "gostadas" por critérios de ordem puramente formais, perceptíveis imediatamente. Supõe-se de todo artista "pós-duchampiano" que além do interesse na reação sensível do público, estejam interessados na reflexão que elas permitem; que possam perceber reflexiva e criticamente a relação entre forma e conteúdo. Em muitos casos, é somente num segundo momento, como produto do conceito, que os sentidos mais profundos da obra se revelam. Não raro este segundo momento é o único que realmente importa (5) -fenômeno que em outra ocasião chamei "o desprezo do sensível". Assim, independentemente de causarem, de imediato, fascínio, perplexidade ou indiferença, estas propostas podem ser consideradas insensatas, gratuitas ou banais se suas razões forem inapreendidas ou demasiadamente rasas. O que equivale a dizer que a experiência sensível só possui valor de fato reconhecido quando envolve uma experiência intelectual com o qual concorde e que o justifique; quando o que é exibido sensivelmente encarna sentidos que tornam sua própria existência como obra de arte pertinente. Sem sobras.

Daí depreende-se que a experiência gratuita dos sentidos seja algo de valor artístico negativo já que o "gratuito", sendo "injustificado", evidencia uma discordância entre forma e conteúdo. Este é um fato que pode facilmente ser verificado na massiva maioria dos filmes melhor avaliados pela crítica especializada - as cenas não precisam ser absurdamente dinâmicas, repletas de efeitos e cores saturadas. Isso porque o estímulo gratuito da sensibilidade não é o maior interesse destas obras. No entanto, considerados "cults", "alternativos" ou "filmes de arte", eles não são, claramente, os mais populares. Antes da sugestão de que algo como uma "arte autêntica" seja para poucos, me parece óbvio que esse fenômeno se dê porque a experiência gratuita dos sentidos exige menos esforços do que aquelas obras que exigem raciocínio e percepção mais sutis. A própria existência da referida categoria "filmes de arte" sugere que os outros filmes, mal conseguindo disfarçar seu caráter publicitário e o objetivo de uma bilheteria recorde, sejam alguma outras coisa, entretenimento talvez.

O ponto é que enquanto os artistas se abrem à inúmeras possibilidades, inclusive a do desagradável, publicitários e designers convertem a satisfação dos sentidos - elevada ao nível de uma experiência de teor altamente prazerosa e transcendental, como se dizia da experiência estética - em fórmula para a promoção de produtos de indústrias diversas como a de moda, de cosméticos e de alimentos (6); às vezes vende-se a promessa de que o produto propiciará tal experiência e às vezes, o que parece exigir maior investimento, a própria propaganda se encarrega da missão de promovê-la ("imagina o produto?"). Se a coisa parece forçada ou não, não vem tanto ao caso; o fato de que respondemos a estes "chamados", consumindo, comprando e desejando possuir estas experiências, deve dizer algo do valor que elas possuem, ou que acreditamos que possuem. Trata-se, então, justamente do tipo de prazer imediato de qual a arte se viu desobrigada a proporcionar e, em última instância, de uma exploração do sensível, instintivo, inconsciente e, em suma, irracional no ser-humano. Ético ou não, o fato é que gostamos de nos excitar com estas experiências basicamente porque antes de racionais somos animais.

Estas são questões que deve-se ter em mente quando se considera o fato de que muitas pessoas "não gostam" da arte contemporânea. É óbvio que é mais fácil sentir prazer com o que é dado imediatamente, ou que não exige muito mais do que o fato de possuir olhos. É necessário sempre chamar a atenção para o fato de que a arte não se dá na superfície do que se apresenta, mas na experiência que fazemos da obra -uma experiência sensória e intelectual* (se por um lado à percepção visual segue nosso pensamento, não é apenas pensando que nos tornamos propriamente conscientes do que vemos? é possível que as coisas se dêem separadamente? a constituição desta experiência não seria dada justamente pelo entrelaçamento?). Assim, podemos pensar na recusa duchampiana que influenciou tão massivamente nossa contemporaneidade, a despeito do que tenha dito o próprio artista, não como uma recusa da dimensão estética como um todo, mas apenas na recusa dessa imediatez já a priori deleitosa que normalmente se lhe vincula. Uma concepção da experiência estética que inclua o exercício do pensamento não só é possível como desejável. Apenas dessa forma faz algum sentido falar em gosto ou prazer com relação à produção contemporânea: quando, como já propunha Kant, se assume a dimensão reflexiva da experiência estética como prazerosa - um prazer que se dá num jogo entre o que pode ser percebido sensivelmente e o intelecto, ou ainda, entre o entendimento e a imaginação. Nesse sentido, é de algum interesse resgatar o freqüentemente malhado pensamento de Clement Greenberg. Afinal o grande crítico formalista sempre dera ênfase à experiência da obra de arte- experiência a que se referia em termos de uma "experiência visual" - expressão que evidencia, na marcada ênfase dada à visualidade, o vínculo inevitável entre o conteúdo significante da experiência e a forma da obra. Contrário, portanto, ao que sugeria Duchamp, a "satisfação" que interessava ao crítico não se limitava à retina - o caráter intelectual dessa satisfação está bastante evidenciado em seus escritos; o formalismo evidenciava apenas que a necessidade de fixação à visualidade era a única maneira de se tratar propriamente de arte - do contrário a idéia operaria sobre ela mesma e se tornaria outra coisa - filosofia, talvez. Assim, podemos considerar que mais interessante do que recusar o formalismo, como se costuma fazer, seria amplificar seus alcances. Uma forma ampliada não poderia levar em conta todo o contexto de apresentação de uma obra? Embora costumemos nos referir à linguagens como pinturas, esculturas, gravuras, vídeos e fotografias como "artes visuais", vale ter em mente que, entendida a experiência como aqui proposto, todas são também conceituais. O que é diferente de considerar que "a arte existe apenas conceitualmente" como o fez Joseph Kosuth ou que a arte não "seja mais do que uma construção para fazer pensar"³, como mais recentemente considerou Marcia Tiburi. Estas simplificações sugerem a insignificância da matéria e da visualidade e apontam para a primazia da idéia na arte. A obra sempre foi "coisa mental", Duchamp apenas evidenciou este aspecto - o que muitos esquecem depois dele (não tanto ele, ironicamente) é que isso não implica a dispensação do retorno à forma, nem mesmo que seja apenas coisa mental. Com inspiração merleau-pontyana poderíamos considerar, talvez com maior propriedade, que ela é coisa corpórea. Na experiência de uma música não se dá conjuntamente a experiência intelectual e a experiência sensível? O som tem em si esta dupla dimensão - preferir o pensamento ao som é não ouvir o som. 


Natural, talvez por serem filósofos, que Kosuth e Tiburi, como aliás também Danto, verbalizem este suposto único valor racional da experiência da obra, mas em se tratando de arte e não de filosofia, me parece fazer pouco sentido que se acredite nessa suficiência conceitual. A arte precisa da matéria e a matéria, claro, é inseparáel do conceito, mas não é ele. É essa impossibilidade de apreensão exata do "conteúdo" que torna as grandes obras inesgotáveis. Os sentidos são múltiplos justamente pela riqueza da relação entre forma e conteúdo. Se toda a arte se realizasse em nível puramente conceitual - no puro exercício do raciocínio - teríamos filosofia e não mais arte; a visualidade nas artes visuais se converteria em obstáculo para o conceito - ruído. O que se está propondo, é a insensatez de se preferir o fato de sermos racionais, quando isto significa negar o fato de que somos animais - materiais e orgânicos. Racionalismo e irracionalismo são fundamentais à arte.

Mas, tendo em mente aquela variedade de critérios existentes para avaliação de obras a que fizemos menção no início deste texto, não faltam alternativas a este posicionamento de teor marcadamente racionalista com relação à produção contemporânea que parece mais ou menos em voga desde pelo menos os anos 60. Assim, agora que entendemos que gostar ou não de obras de arte pelo impacto imediato que ela pode, ou não, propiciar é em muitos casos pouco pertinente ou insuficiente para a compreensão dos sentidos da obra - e assim, para sua avaliação - devemos lembrar que não há impedimentos para que se considere essa imediatez fundamental. Com efeito, o crítico americano Donald Kuspit possui o hábito de considerar artistas conceituais, "pseudo-artistas", já que para ele o valor "estético-existencial" ou "orgânico e existencial" de que carecem muitas das propostas destes "impostores" é fundamental para a arte verdadeira. No entanto, nem de longe esta pode ser considerada uma posição padrão, já que, um tanto quanto radical, entra em choque constante com as correntes predominantes da arte contemporânea - minimalista e conceitual, por exemplo. De fato, minha sensação é de que este sentido a que fazem referência muitas destas vozes responsáveis pelo aspecto dissonante da atual produção crítica, parece haver se perdido de vista com o único interesse de se fazer críticas sociais e políticas - por mais interessantes que sejam sob estes aspectos; é o resultado natural da conversão de movimentos modernos que se sabiam excêntricos quando surgiram, em casos centrais e paradigmáticos.

A questão é que, ainda que se considere imprescindível a experiência sensível-imediata da obra de arte, como quer Kuspit, ela não deve importar de maneira exclusiva. Afinal, embora não concorde que o sentido de muitas obras esteja "fora do alcance do olhar" como considera Arthur Danto, é bem verdade que "só temos acesso a elas através de exercícios de interpretação bastante elaborados”. Se esses sentidos nos escapam, acredito, junto com Merleau -Ponty, é que precisamos reaprender a ver. Assim, a obra de arte deve ser pensada como um tipo de proposição que pede o corpo inteiro - corpo pensante. A obra impressiona continuamente, pela própria sensibilidade, o corpo e o pensamento, de maneira lógica e intuitiva, nos fazendo acessar sentidos que podem apenas ser experienciados. O sensível, portanto, não pode ser tomado de maneira isolada, como um mero meio para um fim, mas como possuindo, ao mesmo tempo, um fim que lhe seja próprio. Ou seja, o horror, o espanto ou o estranhamento do enfrentamento, em um museu, com um urinol ou com um corpo animal em putrefação ou com alguém que se deforma ou se debate, não pode ser relevado - ele é parte da experiência artística. Acreditar na suficiência de conceitos é ignorar a diferença de intensidade entre se deparar em um museu com uma destas obras e ver um registro dela em um livro ou pela internet. A obra de arte exige a presença do corpo - não apenas o pensamento, como a filosofia comum - acadêmica -, nem apenas a dimensão sensual, como geralmente a publicidade. Cada vez me parece mais claro que a justeza ou adequação entre o que se apresenta sensivelmente (a forma) e o conceito (o conteúdo) é definidor da qualidade da obra, simplesmente porque se relaciona com o valor de verdade da proposta; um não leva ao outro; ambos são partes de um mesmo sentido. Se há incoerência é que a obra deve ser ruim. Conferir importância ao poder evocativo dos dados sensíveis da obra é saber que ele torna algo mais palatável e acessível, juntamente com o conceito, de maneira intuitiva, sensível e imediata, tudo o que é anterior ou contrário à própria razão. Por isso não é sensato que se queira compreender racional e completamente a obra de arte. Ela não é filosofia e, quando em determinadas propostas conceituais dela se aproxima, não só a visualidade, no caso das artes visuais, corre o risco de converte-se em obstáculo para se chegar à idéia, seu real e único interesse, mas em desculpa para um discurso mal formulado, incompleto ou raso. Quando os conceitos são tão claros, textos dissertativo-argumentativos são muito mais adequados para a explicitação de sentidos. A visualidade nas artes visuais, como o som, na música e as palavras na poesia, são o que permitem a inesgotabilidade da obra de arte, já que existem precisamente para o que não se sabe, ou melhor dizendo, para o que não pode ser objetivado em conceitos específicos; pela abertura que permitem; explicitam sentidos em cadências, ritmos, matizes e em tudo que não pode ser propriamente comunicado. Por isso ver reproduções de obras dotadas de significativo valor estético é diferente de vê-las "ao vivo" - é necessário sentí-las pensando, experienciá-las por completo, para aí perceber seus sentidos. Obras conceituais interessadas apenas na idéia geralmente dispensam esta experiência do corpo, como aliás faz questão de explicitar Joseph Kosuth em seu texto "Art after Philosophy". Não diria que, neste caso, não são obras de arte, como sugere Kuspit, mas que são obras menos interessantes, piores até, certamente.

Deve ser, enfim, por algo diferente do puro arrebatamento de uma experiência sensível - e também do puro raciocínio - que se deve conduzir os sentidos todos e a mente ao museu, ao teatro ou pra onde quer que esteja a arte para experimentá-la. O modo potencialmente totalizador da experiência que não nega corpo, sentidos, pensamento e - porque não? - espírito, deve fazer valer o esforço. No mínimo nos tornamos menos ríspidos e mais abertos à tudo aquilo que existe sem possuir um sentido aparente, como a própria vida.
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¹Devemos considerar que antes das "artes liberais" havia pouca distinção entre as atividades que hoje consideramos arte, e práticas como a navegação e a medicina, por exemplo. Eram todas igualmente pragmáticas. Poderíamos considerar então que o prazer propiciado por uma escultura seria oriundo do sucesso na representação do ídolo, de sua serventia para adoração ou ainda na adequada descrição de um determinado episódio mítico, da mesma maneira que o prazer envolvido na construção de um navio seria oriundo de sua navegação ou não afundamento. A separação vai ocorrer apenas no século XVIII com a criação da categoria "Belas Artes" ou "Artes" reunindo atividades tão distintas como pintura, música e dança. A reunião destas atividades sob um mesmo termo sugere a identificação de pontos em comum. Defendeu-se inicialmente que todas imitariam a natureza e, mais tarde, que o tipo de experiência que permitiriam era de alguma maneira diverso da experiência feita de outras coisas. É aí, finalmente, que podemos pensar num tipo de prazer propiciado pela escultura diverso do prazer propiciado pela construção de um navio.

² Uso "em si própria" e "em si mesma" entre aspas porque não deve existir isso de algo que tenha qualquer espécie de valor fechado em si. A experiência da coisa é feita a partir de um sujeito e só se dá em relação com ela. O que se quer dizer é que a experiência da coisa (tanto por parte do produtor quanto do público) possui sentidos significantes que, entendidos como valores, independem de qualquer eventual uso que a coisa possa ter. Que a coisa por ela mesma de alguma maneira se basta exigindo do sujeito apenas uma abertura para uma relação que é sem fim outro que a própria relação.

³"Que a arte mova nossa sensibilidade é a esperança sem fundamentos de muitos, mas sensibilidade é uma formulação imprecisa entre o perigoso culto da emoção e os sentimentos que só são elaborados mediante a interferência da racionalidade capaz de criar conceitos. Não há chance de que arte hoje seja mais do que uma construção para fazer pensar...". "O luto da arte". Revista Cult. Ano 13. nº 145. Pg. 42.


* Me parece particularmente interessante, embora não sem problemas, a definição de experiência estética de Suzanne Langer: "A alegria de uma experiência estética direta indica a que profundidade da mentalidade humana essa experiência chega. Pode-se dizer verdadeiramente que uma obra de arte, ou qualquer coisa que nos afeta como o faz a arte, 'provoca algo em nós', porém não no sentido usual— dar-nos emoções e estados de ânimo — que é negado, e com razão, pelos estetas. O que ela provoca em nós é uma formulação de nossas concepções de sentimento e nossas concepções da realidade visual, factual e audível, em conjunto. Ela nos dá formas de imaginação e formas de sentimento, inseparavelmente; quer dizer, clarifica e organiza a própria intuição. É por isso que ela tem a força de uma revelação e inspira um sentimento de profunda satisfação intelectual, embora não suscite qualquer trabalho intelectual consciente (raciocínio). A intuição estética apreende a forma maior e, portanto, a significação principal, imediatamente; não há necessidade de trabalhar através de idéias menores e implicações cerradas em primeiro lugar sem uma visão do todo, como no raciocínio discursivo, onde a intuição total de relacionamento vem na conclusão, como um prêmio. Na arte, é o impacto do todo, a revelação imediata da significação vital, que age como chamariz psicológico de uma longa contemplação." Suzanne Langer. Sentimento e Forma

1._Erich Heckel. Moinho Perto de Dangast, 1909.


















_Emil Nolde. Mar no Outono, 1910.


2.
_Marcel Duchamp. A Fonte, 1917.



















3.
_Anish Kapoor - Cloud Gate, 2004
_Bill Viola - A Travessia, 1996.













_Wolfgang Laib - Pollen de Hazelnut, 2002.














4.
_Orlan e Stelarc. Body artists.













_Herman Nitsch. Six Day Play, video still.




















_Damien Hirst. Touro, 2007.




















_Marina Abramovic. Expanding in Space, 1977




5.
_Hans Haacke - Helmsboro Country, 1990.















6.
_Gucci




_Lacta


quarta-feira, 28 de abril de 2010

Aquilo de que nos fala o que vemos



"--Já sei que você vai rir de mim -- replicou o pintor --, mas o fato é que não posso expô-lo. Pus demasiado de mim mesmo nele.
Lorde Henry estirou-se, rindo, no divã.
--Eu sabia que você ia rir; mas é absolutamente certo, apesar de tudo.
--Demasiado de você mesmo nele! Palavra, Basílio, não o julgava tão vaidoso; não encontro, francamente, nenhum traço de semelhança entre você, com a sua fisionomia carrancuda e enérgica, o seu cabelo preto como carvão, e esse jovem Adônis, que parece feito de marfim e de pétalas de rosa. Porque ele, meu caro Basílio, é o próprio Narciso, e você...bom, naturalmente você tem uma expressão inteligente e tudo o mais. Mas a beleza, a verdadeira beleza acaba onde começa a expressão intelectual. A intelectualidade é em si mesma um modo de exagero e destrói a harmonia de qualquer rosto. Desde o momento em que alguém se senta para pensar, torna-se todo nariz, ou todo fronte ou alguma outra coisa assim horrenda. Repare nos homens que triunfaram nas profissões intelectuais. Como são, de fato, hediondos! Exceto, naturalmente, na Igreja. Mas, na Igreja, não pensam. Um bispo repete, aos oitenta anos, o que lhe ensinaram a dizer aos dezoito, e a conseqüência natural é que tem sempre um aspecto absolutamente delicioso. O seu jovem e misterioso amigo, cujo nome você nunca me disse, mas cujo retrato realmente me fascina, não pensa nunca. Estou absolutamente certo disso. É uma bela criatura sem miolos, que poderia sempre substituir aqui, no inverno, as flores ausentes, e refrescar-nos sempre a inteligência, no verão. Não se vanglorie, Basílio; você não se parece em nada com ele."


Esta foi certamente uma das passagens que mais me marcou em O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Tanto pelo sentimento de vulnerabilidade do artista que em sua pintura colocou demasiado de si, quanto pela bela fala de Lorde Henry. De início eu considerava o fragmento um exemplo do que já se considerou "o mal da modernidade" (T.S.Elliot) - a dissociação entre o sensível e o racional - pela maneira como o belo parece inconciliável com o intelectual; mais tarde me pareceu justamente o contrário¹; trata-se da aplicação ao homem do pensamento comum à arte de que forma e conteúdo são indissociáveis. Isso deve equivaler a dizer que o que é percebido formalmente é imediatamente lido de maneira que informa algo que está para além do observável. Que, por exemplo, a mão áspera e calejada de um trabalhador informa sobre a aspereza de sua vida ou sobre o tipo de trabalho que executa, da mesma maneira que os olhos de alguém podem falar de sua origem, ou de seu humor e a maneira como alguém se veste ou escreve, falam de sua personalidade. Poderíamos chegar a considerar práticas medicinais alternativas, como a iridologia, que atentam-se à traços observáveis no corpo para diagnosticar males que não chegam a se manifestar de maneira direta.

Mas porque, neste sentido, a beleza emudece?

De início poder-se-ia dizer que o sentimento de beleza seja subjetivo e que por isso não há muito dele que possa ser dito, afinal, dependeria de gosto e "gosto não se discute". Segundo Kant, filósofo alemão do século XVIII, no entanto, o belo permite a reivindicação de universalidade: teoricamente todos concordariam que algo belo é belo se alguém assim o considera.'Teoricamente' porque o filósofo diz que sobre o juízo de gosto se discute sim, mas não se disputa. Ou seja, pode-se exigir concordância, mas não há como comprovar ou demonstrar conceitualmente o belo porque ele não permite conceituação; ele agrada, sem conceitos. Assim, o belo deve permitir ao menos que façamos analogias com outras coisas que propiciam sentimentos semelhantes. Não por acaso, referindo-se a Dorian, o personagem de Oscar Wilde faz menção a uma figura mitológica e à beleza da natureza - arte e natureza seriam justamente as duas coisas capazes de propiciar uma experiência estética, de acordo com o pensador alemão. O "jovem Adônis" que "parece feito de marfim e de pétalas de rosa" é fascinante. A pele branca deve ser homogênea, sedosa e tenra, deve possuir linhas harmoniosas que remetem à noções de preciosidade, pureza, suavidade, delicadeza; perfeição, enfim. Não deve haver nele qualquer vestígio de inconformidade - é "sem miolos" porque é pura concordância e comprazimento; conformação e encanto. Noções que, obviamente, evidenciam o prazer do contemplador - prazer estético; O prazer emudecedor da contemplação da perfeição.

A intelectualidade, por outro lado "destrói a harmonia de qualquer rosto", não tanto, creio eu, por ser "em si mesma um modo de exagero", já que a beleza também o deve ser, mas justamente porque recusa conformidade, adequação e delicadeza - ela não pode ser harmônica devido a sua própria inconformidade. Assim, ela inspira materiais bem menos nobres, como o "carvão" e, "carrancuda" e "horrenda", não é prazerosa.

Por mais que tais associações sejam cotidianamente imediatas e involuntárias, é interessante que nos tornemos criticamente conscientes da maneira que lemos as coisas que vemos. Tais considerações podem permitir, afinal, generalizações perigosas. A atribuição de defeitos morais ao que se considera feio, por exemplo - como a beleza, a feiúra se funda subjetivamente; caracterizada como "exótica" ela pode ganhar conotações diversas - como o ar de intelectualidade sugerido por Lorde Henry. É necessário ter em conta, de toda forma, que muitas considerações podem apontar mais para nossos preconceitos e para noções fundadas em estereótipos grosseiros do que para qualquer característica própria do objeto de análise.

Em última instância, o esquema deve ser visto com alguma desconfiança. O que dizer, por exemplo, de alguém de proporções e traços "justos" e simétricos que se revela um ladrão? ou de alguém que parece ingênuo e se revela astuto? ou que parece saudável e se revela doente?*
O erro no julgamento denota a ruína de todo o esquema ou simplesmente uma percepção falha?
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*“Quando pessoas e civilizações se tornam degeneradas e materialistas, elas sempre apontam para sua beleza externa e suas riquezas, e dizem que se o que elas estavam fazendo fosse errado, elas não estariam tão bem, tão ricas e tão bonitas. As pessoas na Bíblia, por exemplo, fizeram exatamente isso quando adoraram o bezerro de ouro, e os gregos também, quando adoraram o corpo humano. Mas beleza e riquezas não têm nada a ver com quão bom você é, é só pensar em todas as beldades que tiveram câncer. E muitos assassinos são bonitos, então isso resolve a questão.”
Andy Warhol