sexta-feira, 13 de maio de 2011

Eu virtual - O corpo além da carne e a arte além da arte.

I.Para além da matéria. 
É verdade que somos todos igualmente carne. Estes corpos físicos que permitem às pessoas na rua, em casa ou qualquer outro lugar que, percebendo nossa presença, nos reconheçam e identifiquem. Mas se nos identificam é que, claramente, a semelhança de nossa constituição guarda as particularidades que nos diferem um do outro. Assim, comuns e particulares, nos definimos incansavelmente por nossas diferenças: sou assim, não assado. No entanto, embora nossas particularidades devam estar inscritas todas em cada sulco de rosto, traço de mão, ou nervura de íris, ou ainda em nossos sabores e odores, sentimos que somos também o que não se vê de nós mesmos - algo além de nossa "mera" aparência. Pensamentos, memórias, desejos e idéias também nos constituem e, como particularidades que permitem nossa identificação, não cansamos de procurar torná-los perceptíveis. É assim que vestimo-nos procurando alguma misteriosa "coerência interna". Optamos por certos cortes e certas cores de roupas e cabelos em detrimento de outros. Tudo se revela mais ou menos informativo do que vai em nosso espírito revelando, talvez, aquilo que chamam "estilo". 


Mas o texto não é sobre moda. É, antes, uma primeira reflexão sobre como essa auto-imagem aparece projetada neste espaço virtual da internet. Posto de outra forma, este texto procura estabelecer uma analogia entre o espírito, ou esta imaterialidade/ invisibilidade humana, e o espaço da internet. A hipótese que me interessa investigar é a proximidade entre esse nosso familiar processo de "virtualização" da identidade e operações artísticas.

Comecemos considerando a insuficiência do próprio corpo físico – único, vulnerável e diversamente determinado – em tempos (pós/hiper/super modernos) que parecem exigir estarmos presentes para além dele. O corpo passa a ser entendido agora como uma limitação: ele estaria defasado em relação às demandas da vida e seria algo que a virtualidade, e a tecnologia de modo geral, deveria tratar de superar. O cenário sugerido pode parecer futurista/ ficcional, mas, se consideramos a popularidade de "redes sociais digitais" nesse início de século, temos que na verdade este é um fenômenos bastante presente e real. A despeito da alegoria já mencionada neste espaço do calígrafo que primeiro pousa a caneta sobre o papel e depois o percorre, de modo a sugerir um desenvolvimento pontual e linear, o corpo, fragmentado como a história e tudo mais na contemporaneidade, passa a ser pensado como rede, de modo sincrônico. Eu estou aqui, mas deve haver alguém falando comigo ali - no Facebook, no Twitter...


II. O invisível e o virtual


É pertinente considerar que estes fenômenos recentes não respondem exclusivamente a questões ou anseios da contemporaneidade. Mesmo essa nossa matéria mais densa, nossa própria carne, nunca está, nem nunca esteve, totalmente visível. Nossa visão do corpo sempre se dá a partir de um ponto e este corpo se revela sempre mais ou menos coberto; maquiado. Há sempre um lado da coisa que não se apreende: as costas de alguém que vejo de frente; o peito coberto...Tudo o que não se sabe é causa de alguma agonia. Querer ver, como querer dizer, é querer objetivar uma falta. O que é dado à sensibilidade de alguma forma reconforta o intelecto porque lhe dá parâmetros de avaliação. É, assim, do delírio da vontade de objetivação do impalpável e do pré-objetivo que se produz a arte. 


A verdade é que não estamos completamente cientes nem de nossa própria disposição física. Não nos vemos 24h por dia. Se me encontro agora sozinho, o que posso perceber de mim é tão somente algo de meus braços, minhas mãos com dedos não tão ligeiros percorrendo o teclado e a presença embaçada de algo de meu rosto emoldurando minha própria visão do mundo. Logo mais vou dormir, e quando a gente dorme a consciência que temos de nós não é nem de fato consciência, nem de fato a gente – não pelo menos esse corpo físico que as pessoas reconhecem, sempre parcialmente, quando perambulamos por aí; temos a consistência dos sonhos.


A criação de um perfil virtual aparece, nesse sentido, como que em resistência às limitações de um necessário corpo bruto que, naturalmente, ocupa um determinado espaço durante um determinado tempo. De maneira consciente ou não, procura-se condensar nesse ambiente virtual essa dimensão imaterial da própria existência de maneira mais ou menos livre das restrições impostas pela própria condição física. Poder-se-ia considerar que a virtualidade, portanto, responde ao drama existencial de não ser, por determinações biológicas, culturais, sociais e históricas, inteiramente livre, oferecendo alternativas, como que oferecendo liberdade (!). Não é acaso por exemplo a proliferação de perfis "falsos" e de pornografia: mais ou menos desligados de si mesmos e mais como "entidades virtuais", o que acaba por se concretizar das pessoas são suas próprias fantasias e devaneios, quase como ocorre em sonhos. A internet oferece um panorama desse imaginário contemporâneo - plural e caótico.


III. A representação ou apresentação de si


Para além da demanda do próprio modo de vida contemporâneo por uma presença "além do corpo", cabe considerar no processo de construção de perfis em redes sociais a satisfação do desejo de colocar-se à mostra, mais disponível ou acessível do que permitiria a unidade de nossos corpos. A identificação de nós mesmos nestes espaço é prazerosa na medida em que é uma forma de diferenciação pretensamente livre que permite ao outro o reconhecimento de nossas particularidades - ao menos aquelas que nos interessam ressaltar. Naturalmente, o processo é movido pelo desejo de uma representação com as quais se esteja confortável e que pareça adequada aos fins a que se presta.


Em resposta ao intimidante e quase obsceno "quem sou eu" de um Orkut ou semelhante, é comum que se recorra a uma citação. O que não deixa de ser revelador: admitir que o outro possa falar do que somos melhor do que nós mesmos significa reconhecer-se no pensamento do outro, identificar-se além de si, no outro. De imagem, no entanto, como que querendo sugerir nossa própria presença naquele espaço, vai geralmente a própria cara. Mas uma imagem da cara, não é a cara. Do contrário a representação ganha ares de apresentação. Seria cabível considerar aí, ao invés da virtualização do corpo, este quenos é dado, o processo inverso: algo como a corporização, ou materialização, do vazio virtual, o que supostamente garante maior liberdade.


Ora, escolher a imagem de um perfil é, como se vestir, fornecer dados sensíveis sobre os quais se farão as leituras dos outros sobre nós mesmos. Leitura que está longe de restringir-se à pura visualidade já que ela não é meramente retinal, mas reflexiva. Com isso, sabemos que diferentes imagens darão a entender diferentes sentidos e com isso entendemos, claramente, que um mero registro da carne, a definição de seus contornos, não é a própria carne, mas, no máximo, a ilusão de uma presença que por não sê-la - presença - é fatalmente limitada em sua determinação; é, por conseguinte, limitante. Já que enquanto o que não se vê da presença é precisamente infinito e inesgotável, o que não se vê de uma mera fotografia, nunca o é da mesma forma - a própria paralisia em imagem fotográfica do tempo no congelamento do movimento é, por definição, a apresentação de uma limitação. 


Os dilemas que se enfrenta na procura de marcar com alguma exatidão a própria existência para além (ou aquém) do visível, do dizível e, enfim, do objetivável, são muito próximos dos questionamentos relacionados às operações artísticas.


IV.Ambivalências da representação e as razões da arte


Se por um lado esta procura por uma justeza na representação ocasiona, como sugerido, uma aproximação natural da arte, cabe considerar, por outro, que essa operação não possui compromisso necessário com 'a verdade'. Afinal, a representação nunca será absoluta, como podemos chegar a pensar quando temos apenas da coisa uma idéia virtual, mas será, pelo contrário, sempre parcial, e mais ou menos abstrata. O caráter pretensamente absoluto que por vezes se atribui às imagens é muitas vezes responsável por enganos e seduções. Mas se por um lado aquela representação não pode evidentemente ser considerada verdadeira, o que se torna evidente se consideramos casos drásticos como o do gordo que se passa por loira, não deverá, por outro lado, ser considerada totalmente falsa: revelando de si uma idéia de materialidade muito distante de sua efetiva matéria, o autor sempre acaba por revelar, de modo ao menos alusivo, o invisível que também lhe constitui - desejo e vontade, por exemplo.


Se parece impossível distinguir, naquilo que se propõe visualmente, o que parece real, objetivo e palpável, de uma mera ideia, ou como os contornos do visível não são tão certos como comodamente gostamos de acreditar, é que a relação entre os termos envolvidos (subjetividade/objetividade, sensível/conceito, visível/ invisível) é sempre intrincada, paradoxal até. Natural, já que na confecção de um perfil nestas redes virtuais, queremos determinar sem limitar. 


A aproximação sugerida aqui entre operações artísticas e estas operações tateantes em que se busca uma mais ou menos contraditória justa medida da indeterminação de nós mesmos, procura evidenciar o potencial poético do exercício naturalmente crítico em que buscamos nos apropriar dos sentidos que propomos esteticamente, para que coincidam tanto quanto possível com a ideia que temos de nós mesmos, e/ou com nossos desejos. Esta consciência a respeito da forma como nos colocamos no mundo gera em maior ou menor medida um cuidado acerca do que se propõe esteticamente que é precisamente a potência revolucionária da arte. Esta consciência alargada nos levaria a buscar perceber criticamente o discurso da estética de gestos cotidianos banais, e com isso a própria forma como vivemos contemporaneamente, ou como utilizamos os espaços - virtuais ou não - de que a contemporaneidade dispõe.

Se por um lado, o que move o processo de construção de perfis virtuais é, grosso modo, a vontade algo existencialista de identificação e reconhecimento por meio da objetivação da própria subjetividade, por outro, não devemos ignorar a qualidade radicular da internet, assim como a finalidade comunicacional destas redes sociais. A plataforma que nos serve para marcar nossa individualidade e que certamente alimenta certa dose de egocentrismo, vaidade e futilidade, é também um interessante mecanismo que propõe certa noção de comunidade. É o que faz ver a admiração crítica a respeito do que estas empresas nos propõe esteticamente. Esta forma de admiração é geralmente convocada pela arte institucionalmente legitimada, mas minha sensação é que na realidade ela é mais urgente em nossa vida cotidiana do que em museus e galerias. Se é verdade que a arte em campo ampliado pode mudar a forma como vivemos, porque não começar com nossos perfis?