sábado, 27 de agosto de 2011

"...
Escutamos a voz dos outros com os ouvidos (portanto no mundo do comunicável), mas escutamos nossa voz, de nós mesmos (e mesmo do outro de nós) com a nossa garganta. E o milagre, a maravilha, é até o 'horror quase místico', é que acontece de escutarmos a voz do outro, a outra voz, com a nossa própria garganta. Essa 'violência comunial' se chama amar; amar de amizade (é a 'fraternidade viril' experimentada no combate) ou amar de amor (é o enlace, a comunhão dos amantes 'no continuum animal e noturno'). Mas isso se chama também ler, ouvir 'subir pela garganta a voz das obras mudas', quer dizer, destiná-las a si. É por essa fusão apenas [de duas gargantas em uma] (que) a perenidade eventual das obras pode ser compreendida.
...
O afeto, a 'frase' inarticulada, impartilhável que é, seu excesso e sua dívida – e portanto a tarefa de testemunhar isso, de dá-lo à partilha da 'sensibilidade'–, eis o que impediria de conceder a última palavra à melancolia do 'nada vale', e mesmo a do 'nada existe'. Pois há, resta, 'contudo', um algo: a maravilha, ínfima e precária, que é um sinal feito pelo desconhecido, subindo pela garganta, transfundido de garganta em garganta, por ocasião de um encontro, de amizade, de pensamento, de escrita.”

Trechos de “A dívida de Afeto” de Plínio W. Prado Jr, sobre a obra de Jean-François Lyotard.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Arte e imaginário

Uma certa parcela da crítica, especialmente a mais influenciada pelo pensamento marxista, não demonstra grande interesse por poéticas que de modo mais ou menos explícito se inserem em algum ponto da tradição romântica propondo por exemplo alguma dose de fantasia, sonho, lirismo e transcendência. Estes termos tornaram-se quase obscenos em certos círculos da contemporaneidade. Propostas “românticas” como estas teriam um efeito anestesiante e seriam sinal de alienação. A arte de acordo com estes pensadores deveria buscar um envolvimento efetivo com o tecido social da realidade, levando em conta seus problemas mais urgentes, ao invés de propor algo como refúgio e escape.

Evidente que certas questões sociais são urgentes; urgentes como é urgente que se preste socorro a alguém que se acidenta. Claro que se o número de pacientes é grande e é grave o estado em que se encontram, precisamos de uma quantidade compatível de pessoas capacitadas para o atendimento destes pacientes. Esperar que por causa da gravidade da situação qualquer um possa atuar como  médico, porém, é delírio. Quer dizer, o envolvimento da arte com campos como antropologia, sociologia e história é sem sombra de dúvidas positivo: é em muitos aspectos salutar que o campo autônomo da arte tenha se esvaído e que a sempre alardeada aproximação entre arte e vida não seja puramente teórica. No entanto, se com essa aproximação chega-se a censurar elementos cuja função social não seja clara, temos aí um problema.

Do meu ponto de vista a questão é sintoma de uma simplificação do que seja propriamente político. Obras que tratam, por exemplo, uma da pobreza e outra do amor, não podem ser consideradas a primeira de significação político-social e a segunda, alienada e por isso indesejável. Chico Buarque já compôs e cantou músicas de explícito teor político, mas é inegável que a maior parte de sua obra trate de temas como as dores e as alegrias de relacionamentos amorosos. A poesia de sua obra seria certamente muito distinta tivesse o artista se proposto a um engajamento mais rigoroso, mas não o fez. A poesia de sua obra não deve ser considerada menor por isso; ou pior, a poesia não pode ser considerada oposta à política. Cantar o amor é fazer política tanto quanto cantar a violência ou a miséria em tom de denúncia.

Alienação é estado quase inerente à condição contemporânea. O que não significa que devamos nos acomodar com nossa precária situação. Pelo contrário, saber que o “espetáculo” está em toda parte deveria nos prontificar para o desmascaramento do mundo, ou, se isso soa demasiado paranóico, pelo menos nos tornar mais atentos. Aí é preciso reconhecer que esta atenção é justamente o que orienta a muito bem intencionada crítica de cunho mais ou menos marxista que refuta todo sinal de romantismo e lirismo, considerando que fantasiar e sonhar é fugir da realidade. Drásticos, não percebem que a desfuncionalidade de sonhar e romancear é o que permite ver as cores e os sabores mais vivos; é o que preenche a vida de poesia e enriquece a imaginação. E que é da vida sem imaginação? Nem artista nem cientista trabalham pobres de imaginação – a invenção é prima-irmã da fantasia e necessária à vida. Este lirismo/ romantismo pode ser sim muito produtivo, enfim. Se for pra combater sonho ou fantasia que sejam aqueles que servem à manipulação e que aparecem aliados a interesses políticos e econômicos. Estes, é necessário reconhecer, temos aos montes. Surgem como modismos e tendências
fartamente vendidos pela publicidade, pelas novelas, revistas de moda, de celebridades, de esportes e mesmo pelos noticiários. A estes sonhos rasos coletivos o grande público adere e confere desmedida relevância. É notável, por exemplo, o potencial do imaginário humano quando se mostra incrivelmente interessado em armazenar e compartilhar dados relativos à carreira e à vida pessoal de jogadores ou celebridades. O imaginário se ocupa com o que se conhece.

O romantismo, o lirismo, o sonho e a fantasia, por fim, não devem ser de todo combatidos na arte. Pelo contrário, se consideramos que temos já sociólogos e antropólogos trabalhando em suas devidas funções, talvez o maior dever político da arte seja ocupar-se de produzir sonhos e fantasias cujos sentidos não sejam tão banais quanto as 
vendidas pela indústria cultural, nem percebidas meramente a nível abstrato e conceitual como uma certa arte já pretendeu; mas sentidos no peito e no estômago do público pensante.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Desencontro

Se Cézanne e Francis Bacon vivessem hoje, pintariam? Se pintassem apenas, certamente não seriam artistas tão interessantes. Suas obras se cobririam de outros sentidos, sentidos dados por um outro, novo, contexto – o de nossa época, claro.

Não creio que pintariam.

Seria um pouco como se, sei lá, para inverter a ordem das coisas, Jimmy Hendrix vivesse na época de Mozart: conseguiria 'atualizar' sua sensibilidade para impô-la de modo ativo frente à história? ou estaria fadado a viver em desacordo com o próprio tempo? Uma sensibilidade intensa como a sua, teria a chance de adaptar-se? ou emudeceria?

Não quero propor essências. Sei que não há possibilidades de um tempo qualquer ver nascer espírito que pertença a outro tempo. De qualquer forma, espírito de tempo algum é tão unívoco se os espaços são diversos. Como, aliás, são também diversas as subjetividades de um mesmo tempo.

Se não ha como pertencer ao tempo errado, há certamente como pertencer espaços errados - de tipo que constrangem nossas singularidades; espaços opressores. Felizmente, não se pertence a espaços; transita-se por eles. Assim, a pergunta deve deslocar-se do sentido temporal, para o espacial: quais devem ser as condições objetivas do espaço para que permita plena realização a expressões tão singulares do espírito?