Há no mundo tanta gente e tanta complexidade que pouco se consegue admitir além do caráter múltiplo e fluído do nosso tempo. Se por um lado apenas trabalhos teóricos muito elaborados acabam formulando noções que se aproximam conceitualmente da complexidade de nossa sociedade (“do espetáculo”, “do controle”, “de risco”), a verdade é que esta apreensão pode apenas ocorrer em um plano abstrato, e nunca de modo concreto. Quer dizer, por maior que seja o distanciamento crítico desejado, na realidade efetiva de nossos dias, este distanciamento é impossível: operamos a partir do interior de um mecanismo que inevitavelmente condiciona o funcionamento de nossas vidas – estamos imersos nesta merda toda, enfim. Considere-se, por exemplo, que no decorrer de nossas vidas ligeiras nos preocupamos quase que exclusivamente com interesses pessoais, diretos e urgentes como comer, morar, trabalhar, amar, se entreter, os religiosos poderiam somar aí se salvar, talvez...São ações que se adequam e ocorrem perfeitamente ao/no interior da estrutura política e econômica vigente, não apenas desprovidas de chances de provocar qualquer alteração significativa, (foi-se o tempo em que uniões homoafetivas, por exemplo, eram subversivas, libertárias ou revolucionárias) como funcionando a favor de um incremento da engrenagem toda. Diversamente limitadas, não apenas por entraves econômicos e políticos, mas também por entraves discursivos (embora se possa argumentar que os discursos hegemônicos estejam sempre em conformidade com a base econômica e política), e direcionadas em cada caso para a manutenção de uma rotina individual, de interesses individuais, nossas vidas são percebidas, geralmente, independentemente de um contexto, mais propriamente um condicionante, social e, ao mesmo tempo, acabam sendo pilares necessários desta macro-estrutura que nos alimenta e limita. Por isso mesmo, por maior que seja nossa indignação, acabamos por viver invariavelmente cada vez mais fechados em espécies de ostras, fazendo muito pouco no sentido de alterar o real estado das coisas.
Alguns acontecimentos políticos e sociais, no entanto, pela proximidade, pelas dimensões, implicações ou pela própria relevância, possuem a particularidade de nos mover um pouco para além de nosso individualismo rotineiro. Por estas razões, estes fenômenos exercem um impacto que não se pode negar e exigem invariavelmente uma atitude, ou ao menos um posicionamento: de que lado você está? alguém pergunta, perturbando o sossego (ou a perturbação) habitual de seu horário de almoço. Aí é curioso notar a maneira cômoda como inúmeros discursos são imediatamente fabricados a partir do interior de uma destas ostras; todos muito cheios de opiniões prontas e se acreditando profundamente autênticos. A maioria não sustenta, infelizmente, a mínima articulação e se limita a bradar frases de efeito moral mais ou menos arbitrárias e a repetir imperativos mais ou menos caducos. Raramente se admite a ausência de respostas fáceis.
Estou pensando no caso recente PM-USP e, mais especificamente, na idéia de que todos que são a favor da presença da polícia militar no campus universitário sejam reacionários, burgueses, conservadores, repressores (“de direita”), enquanto os que são contrários, são maconheiros, baderneiros, revolucionários, radicais, libertários (“de esquerda” ). Naturalizadas, estas generalizações acabam carregando consigo uma série de sentidos que acabam por orientar de modo mais ou menos automático decisões, posicionamentos e ações (como se não ser maconheiro fosse motivo suficiente para ser a favor da polícia no campus, ou como se não houvesse maconheiro reacionário). Para complicar um pouco a discussão e inverter a aparente obviedade dos fatos, seria possível pensar no voto pela presença da PM no campus como uma atitude de algum modo "libertária", e o voto contra a presença da PM, como conservadora ou reacionária? Ao menos para fins de provocação, eu pretendo argumentar que sim.
Pretensamente contendedora de conflitos e mantenedora da “ordem”, a atuação da polícia militar é sem dúvida problemática, não pretendo afirmar o contrário. Enquanto a PM responde armada, com intimidação, coerção e violência a qualquer sinal do que se considera delinquência ou ilegalidade, uma visão minimamente “humanitária” defenderia em lugar desta, práticas mais tolerantes e compatíveis com aquelas velhas noções de liberdade, igualdade e fraternidade, segundo as quais, antes de qualquer solução imediata dada por atitudes repressivas, mais valeria o diálogo e, a longo prazo, a educação. Postos desta forma, no entanto, ambos os posicionamentos são insustentáveis, o primeiro pela própria violência, o segundo, pela ingenuidade. Quero dizer que pra que uma melhoria da qualidade da vida social ocorra de maneira efetiva, é necessário uma mudança estrutural muito maior do que o simples banimento do policiamento militar de um determinado espaço. Isso porque antes de ser causa de problemas, a PM é sintoma de traços fundamentais da nossa sociedade; algo como um “mal necessário”, para muitxs.
Antes de propor um meio termo, algo entre 8 e 80, como um aprimoramento da guarda universitária como vem sendo sugerido, proponho uma perspectiva talvez pouco considerada: um dos elementos que me parecem fundamentais à estrutura social vigente é a profunda desigualdade que a define, assim como a maneira subsequente como cada pólo se acha autônomo em relação a outro – pelo menos a classe mais privilegiada, “alta”, com relação à ”baixa” – a relação normativa se não é de completa exclusão, é de exploração e subserviência. É pela incompatibilidade destes pólos que se acham tão profundamente distintos que há tensão, choque e, finalmente, a necessidade da existência de algo como uma polícia militar, para conter conflitos e manter a ordem via repressão. A polícia fora do campus, finalmente, corrobora com esta distinção – não entre ricos e pobres, no caso, mas entre universitários e o restante da sociedade.
Antes de propor um meio termo, algo entre 8 e 80, como um aprimoramento da guarda universitária como vem sendo sugerido, proponho uma perspectiva talvez pouco considerada: um dos elementos que me parecem fundamentais à estrutura social vigente é a profunda desigualdade que a define, assim como a maneira subsequente como cada pólo se acha autônomo em relação a outro – pelo menos a classe mais privilegiada, “alta”, com relação à ”baixa” – a relação normativa se não é de completa exclusão, é de exploração e subserviência. É pela incompatibilidade destes pólos que se acham tão profundamente distintos que há tensão, choque e, finalmente, a necessidade da existência de algo como uma polícia militar, para conter conflitos e manter a ordem via repressão. A polícia fora do campus, finalmente, corrobora com esta distinção – não entre ricos e pobres, no caso, mas entre universitários e o restante da sociedade.
Não sou obviamente a favor da ação truculenta da polícia por ser contra a criação de um oásis universitário. Antes, sou a favor de um entrelaçamento dialógico entre esferas que se acham autônomas (me refiro novamente à relação entre universitários e não universitários) e a favor de uma esfera pública crescente. Nesse sentido, não critico inteiramente o rebuliço todo causado pela ocupação da reitoria por alguns dos estudantes contrários à presença da PM na universidade, muito menos a greve em reação à maneira como a reitoria foi retomada, principalmente quando ela se soma a causas como as relacionadas à gestão do atual Reitor da universidade. Em última instância, a coisa toda permitiu que muitos, eu aí me incluo, buscassem sair do conforto de suas preocupações cotidianas articulando o próprio pensamento em uma direção menos habitual do que necessária. Antes tarde do que nunca.