domingo, 29 de agosto de 2010

Razões pressupostas - da ciência à natureza

Este texto pretende desmembrar alguns pontos do post anterior. Principalmente com relação às razões da natureza, tema ali apenas sugerido.
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Quando com os devidos estudos científicos se compreende as razões de fenômenos como o eclipse solar, o ciclo menstrual feminino e o crescimento do cabelo e das unhas - mesmo algum tempo após a morte -, estes fenômenos, aqui escolhidos de maneira totalmente aleatória, apontam para a lógica de processos biológicos, químicos ou físicos e, devidamente compreendidos, deixam de dar margem para formulações suspeitas, esotéricas ou místicas, que pudessem justificá-las; é que por meio de observação empírica e o exercício de uma razão especulativa nosso pensamento se confronta com o fenômeno buscando identificar a lógica que o constitui - pensando-o; Ao revelar as razões, como nestes casos, a ciência acaba assumindo para si certo caráter "decodificador" do mundo. Da queda da maçã à produção de obras de arte,  projetam-se razões - conjecturações - para a existência de todas as coisas que podem ser experienciadas. Esta verificabilidade de sentidos em toda coisa aponta para um certo ordenamento da natureza e para uma noção de "perfeição" que, de uma maneira geral, sugere uma razão anterior às nossas capacidades de conceituação. Não à toa alguns pensadores, se estou certo Espinoza era um, tenham feito poucas distinções entre Deus e natureza.
Depreende-se destas considerações que, da mesma maneira que em outros tempos certos fenômenos pareciam mistérios insondáveis, muitas das coisas que hoje nos parecem ocultas, pelo desenvolvimento de uma razão lógica - nas ciências -, cedo ou tarde - se houver tempo para tanto - serão logicamente justificadas (ou justificadas de maneira lógica). Assim, poder-se-ia considerar que tão certa  quanto está que 1 + 1 são 2, a ciência segue na cola desta suposta inteligência anterior à nossa que rege o funcionamento do mundo; "no rastro de Deus".
Mas ao passo em que sua metodologia meticulosa é lenta, os "mistérios" que se procuram decifrar, como o câncer e a AIDS, não raro se revelam implacáveis. Assim, diferente de uma simples checagem da ordem lógica do mundo, o que as ciências promovem são maneiras de contorná-las ou conformá-las aos nossos propósitos. Toma-se as rédeas da suposta inteligência do mundo e faz-se com que ela atue de maneira mais favorável às nossas necessidades e desejos. Assim manipula-se a lógica da natureza (ou de Deus, para conferir alguma dramaticidade ao discurso) e criam-se subterfúgios mais ou menos drásticos: contra a fome: o cultivo e desenvolvimento de ferramentas para caça; contra a chuva e o frio: uma casa com teto e coberta; contra o crescimento demográfico e os riscos de contaminação: camisinhas; contra as inconvenientes impotência sexual masculina e sangria mensal feminina: pílulas; contra um tumor: um procedimento cirúrgico; contra nossa incapacidade de voar: aviões; e assim por diante.
Decorre, naturalmente, uma transformação radical da ordem do mundo e o surgimento da necessidade de reagir contra os efeitos negativos, previstos ou não, de eventuais "soluções"; o que acaba por gerar uma cadeia mais ou menos caótica de fenômenos não exatamente naturais (ou "de Deus";). Assim, atuando contra a lerdeza de nossos passos, a necessidade de locomoção acelerada e individual culmina na produção de veículos que, por nossa necessidade de lucro (a competitividade exige diferenciação sempre crescente de modelos), acabam por contaminar e entupir as cidades. Por exigirem petróleo, promovem guerras que, por sua vez, alimentam a indústria mais lucrativa do mundo, a indústria bélica. Ou a necessidade de, contra a fome - para manter o esquema-, desenvolver-se uma indústria pecuária que acaba por revelar-se um negócio tão lucrativo que justifica haver no Brasil maior quantidade de gado do que de gente (o mesmo com porcos) e que também determina o produto de maior exportação do país, a soja, direcionada não para a alimentação de pessoas, mas do gado - como ração - para a posterior alimentação de não tantos quanto seria possível se esta enorme quantidade de terra necessária para o pasto (uma demanda, aliás, sempre crescente e em nome da qual é feito boa parte do desmatamento na amazonia) e para o plantio da soja, tivesse sido utilizada para o cultivo diversificado de frutas e hortaliças voltadas diretamente para o consumo humano. A indústria do consumo de carne acaba por se revelar insustentável e, de maneira paradoxal, promotora da fome no mundo.
Quer dizer, é óbvio que a intervenção cirúrgica para a extração de um órgão tomado por tumores é um exemplo que justifica a drasticidade do procedimento - a origem de toda esta transformação da ordem do mundo, como este exemplo bem ilustra, é em essência, fruto de uma necessidade de viver bem, melhor ou mais e é, portanto, genuinamente humana. Mas é necessário ter em mente que nem sempre as necessidades e desejos que determinam as operações humanas são tão dirigidas a um aumento de expectativa e qualidade de vida, de modo que as coisas começam a se desenvolver de acordo com interesses muito particulares e mesquinhos - geralmente, o lucro de alguns poucos.
O que me parece motivador neste quadro é perceber ao longo da história o surgimento de linhas de pensamento que não entendem a necessidade de atuação do homem à favor da vida como necessariamente "contra" a natureza. É assim, por exemplo, a prática de algumas medicinas consideradas alternativas, como a homeopatia, segundo a qual, me parece, - para voltar ao exemplo do tumor - a extração de um órgão afetado nem seria uma alternativa. Procuraria-se entender a lógica do surgimento do tumor, para operar com ela, e não contra ela. Não à toa alguns sintomas se acentuam no tratamento homeopático.(É, enfim, este modelo de razão, mais próximo da lógica de funcionamento da natureza que pretendi propor, de maneira talvez muito vaga, no último post.)
A questão é que o dissecamento do mundo pela razão, além de revelar-se por diversas vezes autoritário, violento e arrogante, é, antes de tudo, afirmativo de uma série de concepções dicotômicas: mente-corpo; racional-sensível; homem-natureza; em que geralmente se subjuga um pelo outro. Mas dotado de uma razão que insiste em conferir para, se julgar necessário, contornar e manipular a lógica do mundo e de si mesmo, parece perfeitamente natural que o homem tenha desenvolvido tais noções conflitantes. O que pode pensar a garota desavisada de sua primeira menstruação? Ou de que maneira a excitação sexual, que é a manifestação de uma pulsão fundamentalmente animal, não conflitaria com o pensamento caso explicações razoáveis não pudessem ser obtidas do fenômeno? A tendência natural é dar conta do ocorrido através do entendimento; até que isto ocorra o instinto animal é fundamentalmente oposto e conflitante à razão. Em casos como o da homossexualidade o entendimento pode nunca chegar a ocorrer simplesmente porque as razões obtidas podem provar-se invariavelmente insatisfatórias. Do mesmo jeito que se prova insatisfatória a repressão. A natureza resguarda suas razões. Não é sempre que algo que não se consiga compreender precisa ser combatido.
Há na história da filosofia, principalmente pós-iluminista, uma tendência chamada irracionalista que desconfia dos alcances da razão lógico-discursiva de qual se utiliza a ciência. São pensadores que apontam, por exemplo, para a sensibilidade, a intuição, a vontade, a instintividade e o inconsciente como outras maneiras de conhecer. Como tal, não deve ser tanto o caso de que se esteja propondo que algumas razões não devem ser procuradas, ou que se deva permanecer em alguns aspectos satisfeito com nossa condição animal limitada, ou ainda que algumas coisas simplesmente não possuem explicação (talvez seja sempre uma questão de tempo para que a ciência continue a dissecar permanentemente o mundo desvendando estas coisas que permanecem ocultas de modo a torná-las manipuláveis). Trata-se mais de propor que se leve em conta não apenas uma parte do homem, mas ele inteiro. Um desenvolvimento não antagônico ao da natureza (como propus que seja o caso da homeopatia), torna-se-ia então natural. Outras faculdades, como a intuição, de alguma maneira se adiantam à razão, revelando outros sentidos que nossa razão desconhece. Estes pontos precisam ser levados em conta.
Ainda que a estas alturas acredite-se totalmente emancipado, a lembrança de princípios não racionais deve lembrar que o homem é, antes de um Deus capaz de alterar a ordem do mundo, natureza. Se a cultura determina como comemos ou o que comemos, é ela - a natureza - que determina o fato de que sentimos fome. Não somos tão diferentes dos animais; e por mais que hoje a eletricidade nos ilumine a noite, o dia ainda se apaga por um período próximo ao de nosso necessário sono. Ainda somos feitos das mesmas partículas do universo e não devemos precisar atuar contra ele, ou pelo menos, não devemos precisar nos afastar tanto dessa inteligência anterior para a qual ainda nos faltam tantos conceitos.

sábado, 21 de agosto de 2010

O tempo, o animal e os sentidos da razão -Do ponto à poesia

Questionando o sentindo da maneira como vive-se mal o hoje em busca de um eterno amanhã, há algum tempo considerei que devêssemos aprender com os animais (aqueles que pastam, por exemplo) o valor do presente; afinal, o futuro, como o passado, não existem, de fato; o que existe, o tempo da conjugação do verbo revela. O futuro (possivelmente, o próximo segundo ao menos) existirá; o passado, existiu; e ambos, enfim, se realizam apenas na intangibilidade do presente; e assim, é só este instante que temos.
Depois considerei que em muitos momentos, principalmente quando em "bando", de fato somos, neste aspecto, como os animais, e isso acaba se revelando um problema.
Obviamente devemos conferir alguma importância à qualidade da vida presente porque de fato pode nos faltar um amanhã. Mas se de maneira mais drástica carecemos de noções de passado ou futuro, nos entendemos como um ponto apenas e assim somos incapazes de construir maiores sentidos. Nossa instintividade ou intuição nos orientaria apenas para a precária manutenção daqueles instantes -o que deve significar que não nos converteríamos necessariamente em baderneiros, mas provavelmente em seres impulsivos, imprevisíveis e, ao mesmo tempo, despreocupados ou ingênuos demais para executar qualquer projeto que pudesse conferir algum sentido à nossa existência, garantir alguma qualidade de vida, ou mesmo mantê-la. Pouco conseqüentes, como a mariposa que procura até a morte o calor da lâmpada, acabaríamos cometendo o que se considerariam "irracionalidades" contra nós mesmos ou outros de nossa ou diferentes espécies.
Mas, devemos concordar, animais não racionais não cometem uma fração das atrocidades que cometemos. O que nos justifica?
Dotados de racionalidade, apreendemos a passagem do tempo e somos capazes de, nele, construir sentidos; Guardamos memórias de um passado - somos capazes de entender nossa situação como resultado de um processo histórico pessoal e social - e somos capazes de projetar um futuro, de modo que deixamos de nos entender como um ponto e nos convertemos em linha. E, como são escolhas que definem o percurso de uma linha - como bem demonstra o calígrafo -, são elas que permitem a construção de sentidos.
O problema é que, se cometemos atrocidades, nossa racionalidade, por paradoxal que seja, não deve ser tão inteligente assim; os sentidos que construímos freqüentemente se revelam pouco sensatos, o que implica na óbvia constatação de que temos feito más escolhas. Pudessem algumas espécies construir sentidos, teriam chegado à conclusão que teriam de se livrar da nossa, para que se preservassem. (Talvez, por excesso de maus sentidos, ainda nos encarreguemos desse fim.)
Enquanto ainda há tempo, concluo que não é tanto que devêssemos aprender com os animais sobre o presente - o que de maneira drástica significaria a negação da validez da construção de sentidos pelo uso da razão- mas antes, que devemos aprender com eles a construir melhores sentidos; inclusive aqueles que nos permitam preservá-los e a nós mesmos.
Se por um lado a sugestão reafirma a já antiga e algo falida fé na razão, ela deve, pela inspiração animal, subtrair a mesquinharia e arrogância que são, em grande parte, intrínsecas ao modelo tradicional.