sábado, 22 de novembro de 2014

Dispersão e concentração - dos lugares onde se realizam a nossa potência de vida

Acredito que seja relativamente sensato deduzir que a "energia vital" de pessoas saudáveis não é, entre uma e outra, tão variável. O que varia é basicamente o lugar para onde essa energia é canalizada, e a medida em que é concentrada. Se somos atletas, focamos nossa potência de vida no trabalho físico do corpo; se somos ficcionistas, focamos nossa energia na elaboração de ficções; se cozinheiros, na elaboração de pratos; se médicos, no tratamento de pacientes; se matemáticos, no desenvolvimento de cálculos, e assim por diante. O fato que desejo considerar, porém, é que nossa vida não se resume às coisas que se supõe que fazemos por aquilo que consideramos ser nosso trabalho, e mesmo aí, de qualquer modo, raramente concentramos toda nossa energia. Cotidianamente, nossa potência de vida se realiza em direções muito variadas e, geralmente, num mesmo instante ela se encontra muito dispersa. Grandes cidades, por exemplo, como sabemos, exigem a capacidade de assimilar muita informação em espaços de tempo muito curtos: carros- motores-luzes-buzinas-conversas-corpos-roupas-olhares...O processamento de diferentes dados sensíveis ocorre geralmente de modo automático, condicionados que estamos ao fluxo de coisas com as quais interagimos ao longo de nossa existência. Deslocados para um campo estranho ao que estamos habituados, como ocorre quando alguém acostumado à vida em grandes cidades encontra-se em meio a uma floresta, por exemplo, nos colocamos em estado de alerta, sem saber exatamente identificar os pontos em que precisaríamos concentrar nossa capacidade de atenção para garantir o desenvolvimento satisfatório de nossa potência de vida. Geralmente, por isso, evitamos este estado de suspensão e preferimos nos mover em terrenos já conhecidos. Nos ditos momentos de "lazer", por exemplo, muitos de nós - os "privilegiados" dentre nós - preferem sentar-se em frente a computadores e abstrair, entre um clique e outro, de acordo com ações já programadas. Embora a articulação dos sentimentos e pensamentos aí envolvidos demandem energia considerável e guardem também a possibilidade de experiências significativas, a nossa potência de vida se realiza em campo "virtual" de maneira muito menos ameaçadora, mais segura, do que em outros, onde estabelecemos com as coisas relações mais diretas. Assim, tendemos a orientar o desenvolvimento de nossa energia de maneira relativamente previsível e calculada, segundo um fluxo contínuo que inclui até mesmo nossa necessidade de comer e dormir; afinal, nossa força não é inesgotável e, de tempos em tempos, é preciso reabastecê-la. Ocorre, porém, que com tantos estímulos e focos de atenção, dedicamos pequenas doses de nossa potência de vida em direções muito diversas e, de tão fragmentada, não resta muito de nossa força de vida para a produção de coisas maiores e possivelmente mais significativas; coisas que exigiriam maior capacidade de concentração, como a arte. Este é certamente um interesse da indústria cultural: que o foco de nossas atenções sejam previsíveis e que nossas realizações cotidianas sejam frívolas. Permanece com isso verdadeiro o que disse Godard em Je vous salue Sarajevo (disponível no youtube): que em nossas vidas a cultura é regra, e a arte, exceção.


Da possibilidade de deter-nos na tendência à instrumentalização dominante

A mecanização de nosso pensamento se expressa no hábito do julgamento, quando muito rapidamente dissecamos e esvaziamos os objetos de nossa percepção até que cessem de ser admiráveis. Afinal, enquanto admiramos qualquer coisa, nos detemos no foco de nossa apreciação e nos vemos impedidos de acompanhar o fluxo que se coloca em nossas próprias vidas como um imperativo "natural". Quando sentimos que podemos atribuir conceitos e classificações que nos permitem compreender qualquer coisa em definitivo, domesticamos o mundo, e eliminamos a possibilidade de arte em nossa experiência. É assim que para problemas e enigmas, em geral, aplicamos nosso conhecimento de modo que as coisas todas possam ser devidamente instrumentalizadas. Mais do que um hábito, a razão técnica e instrumental é uma exigência de nosso modo de vida, pois ele só é possível enquanto muito rapidamente, e de acordo com interesses, julgamos compreender o que deixamos de apreciar. Compreender e "encaixotar", afinal, nos coloca na confortável posição de operadores - aqueles que detém o controle. Confortável, porém, apenas pq assim mantemos o fluxo; fluxo que intimamente sabemos ser necessário mudar. Pois que são na realidade estas coisas que julgamos compreender de modo tão definitivo? A que espécie de coisas estamos cegos seguindo o fluxo de nossa vida cotidiana? A estas coisas apontava Merleau-Ponty quando dizia, em O Olho e o Espírito, que devemos reaprender a ver. Pois se na realidade atentamos aos objetos de nossa percepção, observamos neles o inapreensível que caracteriza a própria experiência da arte. Reconhecer a arte em nossa existência é por isso libertar os objetos de nossa experiência: por esta razão, a educação estética, ao propor a compreensão da vida como obra de arte, é uma proposta de educação libertária.

Nada disso é novo. É, na realidade, algo que já foi dito de diferentes formas pelas mais diversas culturas, e em muitas diferentes épocas (no oriente e no ocidente; na antiguidade e na modernidade; entre os povos originários e os "civilizados"). E no entanto permanecemos céticos, como se nada disso fosse sério, ou como se não fosse com a gente. Os românticos foram provavelmente os que disseram estas coisas de modo mais próximo à forma como eu mesmo digo. Natural, por isso mesmo, que estas ideias sejam por algumas pessoas consideradas ingênuas ou utópicas, pois a própria tradição romântica, afinal, costuma ser assim considerada. Se porém nos afastamos de estereótipos, vemos que a tradição romântica impulsionou uma série de ações concretas cujos efeitos não podem ser ignorados. Não se trata, portanto, de sugerir que algo como um modo "mais encantado" de pensar e perceber a existência pode simplesmente mudar o mundo, mas sim de reconhecer inúmeras práticas que de fato se estabelecem ao redor do mundo a partir de princípios mais apreciativos e menos mecânicos. São experimentos que buscam estabelecer condições para que nosso tempo e o tipo de relações que estabelecemos uns com os outros e com o meio que nos cerca seja outro: espaços de arte; espaços autônomos; ecovilas; gift economy; desescolarização...Experiências geralmente auto-gestionárias que reúnem artistas de todas as áreas do conhecimento - pessoas dispostas a entrar num processo intenso de desconstrução e (re)construção, para iniciar o processo de transformação que desejam ver ocorrer na sociedade a partir delas mesmas. Todas estas experiências e espaços podem ser considerados centros difusores de um processo de transformação real em nossa cultura, para que as diferenças entre nós sejam menos agressivas, e para que assim possamos desenvolver vínculos afetivos mais amplamente satisfatórios uns com os outros - a simbiose como um modelo de relação, como propôs Kropotkin. Nada disso é utopia, portanto. É possível trabalhar, desde o campo das ideias, na produção de espaços heterotópicos, como propôs Michel Foucault: "espécies de utopias realizáveis". Com vários espaços assim surgindo em nosso meio, que seria de nossa cultura!? Pode alguém pagar pra ver?

cooperativapoetica@riseup.net

breves divagações sobre a história e os limites de nossa capacidade de agência

É bem verdade que a história é determinante em relação a forma como nossas vidas se desenvolvem. Por outro lado, porém, temos um poder inegável a considerar sobre o modo como a nossa potência de vida se estabelece, e somos assim também determinantes em relação à história.

Desde o princípio da nossa constituição física, somos preparados química e biologicamente para processar estímulos de maneira seletiva, e (re)ativa. Com boa formação, esta inteligência poderá ser verificada para além dos processos celulares, no uso de nossa razão. É por ela que nossa autonomia pode ser reivindicada e, com ela, a autoria dos processos dos quais nos achamos responsáveis ao longo de nossas vidas. Em maior ou menor grau, toda escolha é crítica e, antes de uma determinação externa, é uma apropriação daquilo que é proposto (socialmente, culturalmente, historicamente, ou mesmo biologicamente).

Por mais críticos e ativos que nos pretendamos, porém, nossa operação está necessariamente limitada às possibilidades conhecidas ou disponíveis – nossa liberdade, desse modo, é condicionada. Se nos apresentam o preto e o branco, podemos apenas optar pela mistura ou pelo vermelho, por exemplo, se tivermos estas possibilidades em nosso repertório; do contrário, o exercício de nossa liberdade estará restrito à escolha do preto ou do branco. Nesse sentido, se identificamos um problema na forma como as vidas tem se constituído na contemporaneidade, este problema deve estar relacionado à pobreza daquilo que nossa cultura tem dado a conhecer. Uma das principais razões para isso é o predomínio de uma razão instrumental que, no capitalismo industrial, se acha responsável pelo progresso da vida mediante o uso interesseiro do meio. É esse interesse que coloca numa base muito pouco distinta toda a fartura de escolhas de que dispõe a cultura contemporânea. É por esta variedade que temos a sensação de liberdade, e por ela somos facilmente seduzidos e distraídos da verdade de que praticamente tudo que se nos apresentam são pretos e brancos.
...

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Fragmentos

As razões da escrita

Escrevo para que minhas ideias não morram comigo. Como que para deixar registros dos lugares por onde pairou meu pensamento. Para que minha experiência sirva para clarear alguns aspectos do Espírito em mim e para além de mim. Pode ser que não seja grande coisa, mas não importa; às vezes o sentimento de conexão é tanto, que é como se o estado de coisas no mundo dependesse do modo como as ideias se desenvolvem por aqui – como se na realização deste trabalho tivesse poder de interferência sobre aquela parte coletiva de nós mesmxs de que falaram pessoas como Jung.
(...)
Temo ser mal compreendido. Que me achem pretensioso, e que na apreciação dessas coisas que digo se limitem ao que considerarem ser meu ego. Por outro lado, não quero que esse temor reduza o que acredito ser minha potência. Na realidade, trato do espírito, e sei que o meu pensamento não é melhor que o de ninguém; eu apenas tenho dedicado mais tempo do que o habitual em nossa época para desenvolvê-lo. Por que como artista, estou muito próximo do vagabundo, e desejo continuar por aí, pois o trabalho de arte importa, mesmo que pareça completamente inútil...

*
Organização

É relativamente recente o momento histórico que nos permite considerar como podemos agir enquanto grupo. Há pouco tempo, a estrutura dos comportamentos era tão rígida que certas condutas não eram questionadas. A mulher, por exemplo, não podia estudar, nem escolher com quem casaria...Somente em condições muito particulares poderia dar vazão a vontades que fossem as suas próprias, e não as de seu pai ou marido. Hoje a situação é outra. Ao menos na maior parte dos lugares, mulheres podem estudar, trabalhar e escolher com quem vão casar, se vão casar; quando e de que forma serão mães, se serão mães... Não podemos ser ingênuxs, porém, de pensar que agora as coisas são perfeitas, ou que devem permanecer exatamente como estão, simplesmente porque em certos aspectos elas estão melhores do que há tempos atrás. Tanto para as mulheres quanto para além delas, inúmeras pessoas continuam sendo vítimas de violência. Penso não apenas nas pessoas que geralmente habitam as margens de nossa cultura, como se dela não fizessem parte: pobres, negrxs, índios, homossexuais, transexuais, transgêneros, mas também na estrutura autoritária que permanece governando com rigidez a vida das pessoas no trabalho, por exemplo. O fato é que em qualquer caso, pelo modo como a violência é naturalizada, muitas vezes ela nem chega a ser por muitos reconhecida, especialmente, eu diria, por aqueles que a praticam – todos nós nos momentos em que somos autoritários. Se podemos porém admitir, com todas as diferenças entre nós, uma unidade, e se atribuímos a ela uma significação superior - a meu ver o que permite a ideia de Deus e do Espírito - então deixa de ser sensato que haja medo na relação entre diferentes, pois já isso configura violência dependendo do modo como inibe a singularidade da forma como a potência de vida se manifesta em cada parte. A realização da nossa potência de vida deve ser sem limites, porque é importante que vivendo sejamos todos livres. Como isso é possível? Pela arte. Pois se mantemos desperta a consciência de que as coisas podem ser de outro modo, afinal, nossa experiência de vida é sempre experiência de transformação, então podemos nos servir de nosso conhecimento histórico, assim como de nossa imaginação criativa, para nos organizar e criar um presente sempre diverso; inspiradxs, talvez, na combinação de nossas melhores ideias de passado e de futuro, assim como nas ideias que temos de como foram e são outras culturas. Alguém tem dúvida de que na relação com a terra, por exemplo, temos muito o que aprender com os índios? A inteligência industrial do homem branco, afinal, ao mesmo tempo em que foi responsável pelo aumento da produção de certos produtos, foi responsável por uma série de catástrofes... Se a vida é experiência de transformação, cabe reconhecer que ao longo da história nem todas as transformações tiveram saldo positivo. Tanto que muitas coisas que em outras épocas foram consideradas progresso, hoje são reconsideradas. Não que devamos buscar uma espécie de retorno a um estado perdido, uma condição passada, mas sim recuperar saberes que a violência naturalizada no passado não nos permitiu enxergar.

*

A morte

Para a realização da nossa potência de vida, nem mesmo a morte deve ser um limite. Isso pode apenas ser concebido se percebemos sem tantos temores que vivendo vamos naturalmente morrendo, e que podemos viver mais e melhor se atentamos ao modo como temos morrido. Podemos não reconhecer as coisas desse modo, mas nossa cultura tem seus ritos de morte. Reconhecê-los nos permitiria propor que se tornem outros, o que certamente alteraria o modo como estamos vivendo. Aprenderíamos a viver com menos medo da morte, e passaríamos a aceita-la, talvez, como quem vive para ela.

*

Festa e política

Dia desses vi gente “engajada” criticando “festas apolíticas”. Fiquei pensando se isso existe. Festa de verdade reúne gente em torno da arte, tem música e dança, pelo menos...só por isso, nenhuma festa é propriamente apolítica. É claro que o discurso político de uma festa em ambiente fechado, onde os que entram são selecionados pelo valor de entrada, é muito distinto daquele de uma dessas festas que ocorrem em espaços públicos, e q são gratuitas. No fim, havendo opções, cabe a cada um de nós considerar quais meios frequentar e q discursos endossar: nosso mundo vai se criando a partir dessas decisões.

*

A realidade do mundo

O mundo não é isso de que nos falam os telejornais. O mundo tem a dimensão de nossa experiência. É preciso recobrá-la para torna-la mais significativa: que experiência de fato temos do mundo?