terça-feira, 9 de novembro de 2010

Notas sobre a razão na arte - o projeto construtivo brasileiro

Durante um período se considerou que arte tivesse mais relação com a natureza, e depois com as emoções e sensações, do que com algo como a razão. No entanto, movimentos modernos e contemporâneos como o construtivismo e o conceitualismo demonstram, pelo contrário, o predomínio da razão em detrimento até, em alguns casos, do sensível. Este ensaio identifica o projeto construtivo brasileiro como um importante objeto de estudo para a reflexão destas questões. Antes, porém, procurar-se-a esboçar uma retrospectiva histórica da maneira como o sujeito entende sua própria posição em relação ao mundo. Por razões óbvias devemos nos concentrar em pontos estratégicos permitindo um rápido panorama que deverá ao cabo, espero, justificar o alargamento do enfoque.

Consideremos de saída o longo período de vigência de um mesmo modelo de pensamento acerca da arte desde cerca de quatro séculos antes de Cristo, época de Platão e Aristóteles, até o século XVIII: a idéia da arte como imitação da natureza. Ainda que natureza pudesse ser entendida diversamente, às vezes dotada de um caráter divino, invariavelmente o que restava durante todo este longo período era pouco mais do que uma atitude contemplativa – venerativa. O artista se restringia a perceber sensorialmente a ordem da natureza - e se comprazer com ela no caso do belo, e temê-la, no caso do sublime (embora este último possa estar igualmente relacionado ao prazer, ele é mais comumente associado ao sentimento de terror).

Não que a relação do homem com a natureza fosse totalmente submissa. Desde o princípio da vida do homem como o conhecemos, o chamado Homo sapiens, ele soube contornar e manipular a natureza conforme suas necessidades. Construiu ferramentas, domesticou animais, cultivou plantas, construiu moradias e afetou naturalmente a ordem do mundo, alterando-a – artificializando-a. A natureza ou a “vontade divina”, no entanto, era em certos aspectos soberana e determinante de certas verdades - verdades inquestionáveis. À razão caberia apreender essa ordem.

Para voltarmos à esfera da arte consideremos, durante o renascimento, o surgimento das chamadas artes liberais, quando o artista passa a trabalhar para a corte e, enobrecido, abandona as guildas e a posição de artesão que nelas ocupava. Como “douto”, passa a ser valorizado tanto pelos conhecimentos históricos e técnico-científicos necessários para a adequada apreensão do mundo natural, quanto por um suposto “dom” ou “inclinação natural” que seria fruto de um impulso ou de uma inspiração divina. É o reconhecimento no homem daquela natureza que até então lhe parecia somente externa.

O lançamento da grade perspectiva sobre o mundo ao mesmo tempo em que demonstra o desenvolvimento de uma maneira exata de apreender geometricamente a natureza, demonstra a valorização do homem, o ponto a partir do qual ela é observada. Este fenômeno também pode ser observado no estudo da anatomia - a verificação da ordem do mundo pela razão torna o homem mais consciente de si mesmo. Mas, ainda que obras assinadas viessem se tornando gradualmente mais comuns, a valorização do sujeito é somente parcial neste momento - artistas que se iniciavam buscavam imitar os estilos dos pintores já consagrados: falava-se em pintar, por exemplo, “à maneira de Rafael” ou “à maneira de Giorgio”. Se este fenômeno depõe contra a personalidade daqueles artistas que necessitavam subsumir seus estilos ao dos grandes mestres, ele conta, por outro lado, certamente a favor da valorização dos estilos muitos particulares destes mesmos grandes mestres. Assim, deve ser legítimo considerar-se que o fruto mais precioso do Renascimento tenha sido a gradual valorização do indivíduo – fenômeno obtido pelo próprio desenvolvimento da razão. É quando se assimila verdadeiramente a idéia de que a natureza, ou o que se entendia como determinação natural ou divina, poderia não somente ser apreendida através dela, mas questionado. Não é acaso o surgimento da Reforma Protestante no século XVI, por exemplo.

Esta valorização gradual do indivíduo vai permitir já neste período o surgimento de obras que evidenciam um certo sentimento de inconformidade, ou não adequação, do homem com relação à natureza. Este fenômeno pode ser especialmente percebido no período de crise e instabilidade que seguiu o Renascimento (além da reforma protestante também pesam a revolução copernicana e o saque de Roma ocorrido em 1527 por tropas de Carlos V da Espanha). A harmonia e o equilíbrio de antes já não se faziam mais possíveis. Como bem demonstram as obras de artistas como Pontormo, Parmigianino e El Greco, o Maneirismo foi o primeiro movimento artístico a romper as barreiras da representação do mundo natural - o primeiro, portanto, em que se percebe com evidência que o homem estava em desacordo com a ordem da natureza. Este período é por isso marcado pelo anti-classicismo e pelo anti-naturalismo.

Mas vai ser no século XVIII que a valorização da subjetividade na arte chega ao auge - fenômeno que não acontece em detrimento da natureza mas, como deve demonstrar a própria definição kantiana de gênio, é a própria valorização da natureza no homem: “o gênio é a disposição inata do espírito pela qual a natureza fornece as regras à arte” (CFJ, 1790, p. 138). Ou seja, gênio é o homem através do qual a natureza age livremente. Não caberia tanto aqui problematizar esta pretensa espontaneidade romântica do artista “criador”¹, mas destacar neste período uma valorização do homem que não ocorre em detrimento da natureza, mas que, pelo contrário, pretende acontecer junto a ela. Claro que, mais conhecido pelo caráter "irracionalista" - intuitivo, subjetivista, egocêntrico, apaixonado e sentimentalista - o sujeito romântico acaba tomando determinações culturais por "natureza", sofrendo-a passiva e deleitosamente. Daí que a crítica costume conjugar o termo "romântico" com ingenuidade e alienação - traços do caráter que passaria a partir de então a definir de maneira quase estigmatizante a "excêntrica" figura do artista. Cabe considerar, no entanto, que em alguns momentos ele chegou a ser crítico com relação à cultura. Um exemplo disso são os últimos trabalhos de Goya.

Assim, se mais tarde o realismo explicita um olhar menos encantado ao mundo, é no modernismo, finalmente, que se observa um verdadeiro tensionamento da relação entre homem e natureza – sujeito e objeto. É que, consciente de si mesmo e de sua posição no mundo, o indivíduo passa a questionar a realidade e age da maneira que acredita ser mais adequada – é a época dos manifestos, lembremos. Assim, ao passo em que alguns movimentos, à moda romântica, insistem na valorização da natureza no homem propondo um retorno a ela (fenômeno com o qual se deve relacionar a liberação de figuras historicamente reprimidas como a criança, o louco e o primitivo – figuras em que a natureza humana poderia ser percebida em estado menos cultural e portanto “mais puro”), por outro lado, outras movimentações vão insistir no potencial da razão – e da cultura - para criticar ou remodelar o mundo.

É, finalmente, onde podemos situar o projeto construtivo brasileiro. Se é verdade que antes do concretismo a produção artística brasileira revelava algum “atraso” com relação às novas movimentações internacionais por estarem todas, grosso modo, voltadas para a busca de uma identidade nacional, não deve seguir-se que estava alheio ou independente deste processo mais geral que tentamos delinear aqui. Também no Brasil os indivíduos começavam a pensar com suas próprias cabeças e, bem ou mal, questionar os esquemas tradicionais de representação – como bem demonstram as frequentes polêmicas com a crítica ainda embebida de valores classicizantes. O fato é que o concretismo foi um salto – um salto contrário à qualquer esquema representativo e em direção ao racionalismo na arte, assim como ao reestabelecimento de um lugar social para a arte – ela deveria “servir de modelo à própria construção social”. Há nela, como escreve Ronaldo Brito, uma “ânsia de superar o atraso tecnológico e o irracionalismo decorrente do subdesenvolvimento”. Recusando a metafísica, a intuição e qualquer suposta transcendência do trabalho artístico a arte passa a ter como modelo a ciência – em especial a matemática. Assim, embora outras movimentações como o abstracionismo lírico ou informal já tivessem deixado totalmente de lado a representação da natureza, (a pintura agora passa a ater-se a suas próprias especificidades: o plano e o material pictórico), o maior diferencial do movimento seria o geometrismo. Os princípios da Gestalt, por exemplo, passam a fornecer os parâmetros para a formulação das obras construtivistas. Trata-se, enfim, do auge da crença na razão no meio artístico brasileiro.

O neoconcretismo por sua vez, como anuncia o manifesto, considera “perigosa” a exacerbação racionalista da arte concreta e “nega a validez das atitudes cientificistas e positivistas em arte e repõe o problema da expressão”. Assim, embora em muitos casos a geometria permaneça presente, é o orgânico que começa a insinuar-se de maneira mais ou menos direta: ao passo em que se recusa a teoria da Gestalt, aproxima-se do pensamento fenomenológico de filósofos como Merleau-Ponty.

Consideremos a pintura “Estruturação com elementos iguais” (1953) de Luiz Saciloto e os “Objetos ativos” (1960) de Willys de Castro (ver figuras). O interesse pela geometria em ambas é completamente diverso. Na primeira o que se propõe são basicamente exercícios óticos. Percebe-se repetição, coerência, constraste, equilíbrio, sequencialidade e continuidade das formas. É o artista tornado “informador visual, submisso de certo modo às leis estruturais que regem a prática estética na sociedade burguesa”. Sem maiores inserções sociais a obra limita-se a um esquematismo formal ou um simples jogo perceptivo e demonstra a luta construtivista pela racionalização do ambiente. Já os objetos ativos, de Willys de Castro, recusam esse reducionismo. Quase ilusionística ela provoca uma inquietação de ordem sensível – não meramente racional. No neoconcretismo, não é tanto o mundo que precisa ser alterado e ordenado pela razão soberana humana. Levando-se em conta a posição do sujeito, a ênfase passa a ser dada não tanto no objeto (ver “Teoria do não-objeto”, de Ferreira Gullar), imposto ao mundo como ordem, mas na relação - no atravessamento do objeto pelo sujeito e do sujeito pelo objeto, como sugeria Merleau-Ponty. Enquanto na obra de Willys de Castro esse atravessamento é sutil, em alguns momentos ele é literal - e intenso - como no caso da obra de Helio Oiticica e Lygia Clark.

A utopia construtiva ao revelar, como o diz novamente Ronaldo Brito, “uma crença ingênua e afinal capitalista na tecnologia em si”, tendendo mesmo para uma “visão tecnocrata da cultura” é, em última instância, arrogante, como o é, aliás, a própria lógica de funcionamento deste sistema – capitalista-tecnocrata. Se, por sua vez, pode ser considerado um problema do neoconcretismo o fato de que foi “opaco politicamente e operava nos limites estabelecidos para a prática da arte na sociedade sem uma visão crítica de sua inserção social” como considera o mencionado crítico, o posterior surgimento de uma arte crítica, política e insersiva, como a arte postal, deve explicitar que, como toda a história - da arte ou não – estes fenômenos não se deram de maneira isolada, mas no interior de uma cadeia. O neoconcretismo não seria possível sem o concretismo, nem boa parte da produção contemporânea mais significativa seria possível sem ambos.

Um problema a se considerar é o da especificidade da obra de arte após justamente este período de inserção – ou ainda, a consideração da maneira como essa inserção ocorre ou deixa de ocorrer. A crítica institucional no modelo de algumas das propostas de Hans Haacke, por exemplo, muito preocupadas com o "fator político", não reafirma aquela crença arrogante na razão no modelo do concretismo e ignora o caráter existencial defendido pelo neoconcretismo? Como evitar essa soberania da razão mantendo um desenvolvimento humano não antagônico à natureza (inclusive à natureza humana), como o fazia o Romantismo, mas sem ser subjugado pela própria cultura, travestida de natureza (sem alienação e ingenuidade, portanto)? Entre uma razão que se limita a verificar a ordem do mundo - e a se comprazer com ele, ou temê-lo - e uma razão autoritária que o violenta insistentemente, o neoconcretismo se consolida como uma alternativa, talvez justamente por sua orientação não tanto teórica quanto fenomenológica, no mínimo interessante e, esperançosamente, ainda fértil.


¹ Ver por exemplo "A falácia expressiva" de Hal Foster. Em Recodificação. Arte, espetáculo, política cultural. Casa Editorial Paulista, 1996.

Figuras:

1.
Luis Sacilotto. Estruturação com elementos iguais, 1953.


2.

Willys de Castro. Objeto ativo de 1960.


3.

Willys de Castro. Objeto ativo de 1962.


domingo, 7 de novembro de 2010

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Tem se tornado quase uma obsessão pra mim, pensar em todas as coisas colocando-as em relação a um sistema binário descrito por inúmeros termos "inconciliáveis e ao mesmo tempo indissociáveis" como racional/sensível; consciente/inconsciente; cultura/natureza, forma/conteúdo, etc. É que o 'sistema' tem funcionado...acho. Pode estar se tornando uma quase paranóia, ("paranóia", "obsessão", não deve ser boa coisa) mas buscar o dentro do fora, a profundidade da superfície, o conteúdo da forma, assim como o inverso disso tudo numa espécie de jogo reflexivo sem fim, tem sido delicioso. Ficar aqui dizendo isso pode parecer meio pedante, mas é que é uma 'descoberta' recente; e só eu sei como quando escrevo - e depois leio e releio, discutindo autistamente comigo mesmo - processo e reprocesso estas questões de modo que elas acabam se tornando altamente determinantes dos rumos que tenho tomado fora daqui. Aliás, esse esquema dicotômico tem se insinuado pelo menos na conclusão de quase todo texto publicado por aqui e meu leitor deve ter a sensação de que me repito. De fato me repito - é que estou assimilando estas idéias.
Em uma aula de filosofia, por exemplo - em que surjo como intruso quase completo já que não sou um aluno regular da área nem nada do tipo -, além do tema já normalmente absolutamente viajado e viajante, me interessa pensar nas razões conscientes ou não da expressão corporal e do gosto duvidoso do professor que fala de dentro de uma blusa de incômoda gola alta; e da cor, do penteado e do corte de cabelo de uma aluna, passando pelas razões da infantilização dos apaixonados, da super preocupação de algumas mães, da revolta de alguns filhos, da repetição de certos padrões de relacionamentos, do resultado das eleições, dos falsos moralismos, dos comportamentos agressivos incitados pelo consumo excessivo de álcool, das inclinações de minhas próprias letras no caderno, da constelação de pintas no braço do meu colega logo em frente; é claro que tenho dificuldades em me concentrar...já nem sei bem sobre o que estou falando!
Me disseram que se chama "impulso epistemofílico"; e que o meu é muito grande. Não fosse esse sistema de polaridades que me permite agora em alguma medida dar conta do mundo (!), seria provavelmente patológico (agora é apenas megalomaníaco). Ele aparece como uma inconformidade enorme com a ignorância, minha própria ignorância, com relação à vida e todas as coisas nela. A sensação deve ser como aquela do 'sublime' - tanta história, obra, informação e experiência mais ou menos à disposição que o curto trajeto deste ponto que é minha própria vida presente com "todas" suas experiências, parece insignificante, quase me tira o ar. Se não me visse como parte dessa zona toda (graças a esse esquema - sujeito/objeto, no caso) eu provavelmente não encontraria meu lugar - murcharia, inerte. Mas como todo lugar e nenhum lugar é meu e não meu, eu opto por me construir a partir dessas relações, permanentemente, até morrer, enrugado, "sabido" e querendo saber mais, de preferência.
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Não estou bem certo de quem, mas sei que já ouvi críticos e artistas admitindo que educaram-se ou educam-se em público. De início isso me causava algum estranhamento. Decerto achava que antes de publicar um livro ou expor uma obra deveria-se estar pronto. Mas nunca se está pronto, certo? O processo é que pode, ou não, ser interessante.

"isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além"
Paulo Leminski

Boto fé! ;)
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