segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Algumas ideias sobre a vida e sobre a arte

Esqueça o nome “arte”. Arte é apenas o nome dado à experiência que temos em relação a determinadas coisas e, embora possamos não estar bem conscientes do que sejam, todos produzimos coisas; é o que importa. A experiência que estas coisas que todos produzimos proporciona, embora possa ser, em alguma medida, significativa, tende a ser ordinária, geralmente devido às finalidades instrumentais a que servem estas produções na rotina de nossos dias. A maioria delas ocorre espontaneamente, às vezes sem muito empenho, meio que por acidente, de modo intuitivo e muito pouco consciente. Embora por diferentes razões possam ser muito importantes e necessárias, a verdade é que sentimos ter pouca razão para nos orgulharmos da maioria delas e muito pouco desejo de exibi-las por aí. É o que ocorre, por exemplo, com o café que preparamos pela manhã, com os pratos que preparamos para o almoço, com os arranjos de palavras que produzimos para nos comunicar, com a maneira como nos vestimos e conformamos nosso ambiente, e mesmo com coisas mais naturais que exigem, no entanto, algum trabalho, como a nossa urina, a nossa merda, e o nosso lixo cotidiano.

Tais produções cotidianas, em geral, não requerem grandes conhecimentos ou capacidades. Basta estar vivo e fazer o mínimo. Algumas exigem corpo forte para erguer pesos, ou minimamente saudável, para pressionar teclas. Geralmente apenas a capacidade de repetir ações determinadas, mecânica e indefinidamente, basta – são produções que ocorrem a partir de trabalhos que chamamos “braçais”.

Outras coisas exigem conhecimentos mais específicos. Para executar estes trabalhos propriamente é necessário, ou ao menos recomendável, passar por um período de aprendizado mais ou menos demorado, dependendo do caso. Geralmente, qualquer um que tenha a formação adequada consegue executar estes serviços já que o conhecimento, quando não puramente técnico, exige mínima capacidade crítica.

Há produções, no entanto, para as quais não bastam trabalho braçal, técnica, ou mesmo quaisquer conhecimentos adquiridos. Estas produções podem envolver certamente todos estes elementos, em maior ou menor grau, mas dependem fundamentalmente de traços muito particulares da sensibilidade do indivíduo que tem em si a capacidade de produzir tais obras. O nome “arte” está ainda muito carregado de concepções relacionadas a produções de tipo muito específico, dependentes, diretos ou indiretos, de uma tradição de instrumentos como o piano, ou o pincel, a tela e o cavalete. Mas independente de quaisquer instrumentos, o que  a história da arte evidencia é a possibilidade de não ordinariedade da experiência proporcionada por certas produções humanas. Quem, em seus tempos, seria capaz de compor peças como as de Lizst, ou pinturas como as de Van Gogh? O desejo muito comum de ser capaz de produzir arte é relativo ao desejo humano de eternizar o próprio espírito produzindo algo ao longo da vida que ninguém mais seria capaz de produzir. Não pela produção "em si", mas pela experiência "única" que esta produção permitiria. Que sentido faz que, para este fim, nos restrinjamos a campos e materiais específicos? A verdade é que se encontrarmos formas de realizar em nosso trabalho a nossa singularidade, então nos reconheceremos nele, desinstrumentalizaremos a experiência vivida e escaparemos do ordinário, pois então produziremos arte. Há quem defenda que isto pode ser um prato de comida, arranjos de palavras, e mesmo nosso lixo cotidiano. Se haverá uma história para estas produções, creio que cabe em grande medida ao empenho com o qual as compomos (e registramos).


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As formas produzidas ao longo da vida de um sujeito revelam o sentido em direção ao qual sua energia vital foi dedicada e despendida. Certas produções exigem modos de vida muito particulares, porque exigem a orientação massiva da atenção do indivíduo para uma direção muitas vezes absurda, por um longo período; às vezes, o de uma vida. Outras produções exigem modos de vida indiferenciados.


Embora seja costumeiro celebrar a riqueza e a multiplicidade da cultura de um país como o Brasil, não devemos deixar de reconhecer suas limitações. Os sentidos em direção aos quais nossas produções culturais apontam raramente revelam-se, por nossa própria faculdade crítica, admiráveis. O que ocorre é a absorção de toda produção cultural por um mecanismo industrial basicamente regulado por interesses individuais que tendem à superficialidade. Treinado mecanicamente neste contexto para assimilar ligeiramente estímulos e fazer escolhas a todo momento, o sujeito contemporâneo tem dificuldade de concentração, sofre de ansiedade, ataques de pânico, fadiga, problemas de sono, depressão (ver autores como Claude Dubar, Ulrich Beck, Zygmunt Bauman). Os focos admirados, como os discursos anunciados, revelam-se pouco claros, geralmente programados; as formas desenvolvidas, domesticadas; o sentido da vida, em particular, incerto.

No que se refere ao trabalho, o foco efetivo tende a deslocar-se da experiência prática propriamente dita, em direção à questão econômica. Em última instância, a desapropriação generalizada da produção por parte daquele que produz, na medida em que revela o distanciamento entre o indivíduo e a própria vida, evidencia a impropriedade do projeto, certamente utópico, de considerar a arte em todos os âmbitos da vida. Neste contexto, instituições específicas fizeram-se historicamente necessárias para abrigar experiências "distintas" porque válidas em si mesmas, não instrumentais ou interessadas como as demais atividades humanas. A existência de um campo da produção cultural que se coloca como exceção - "ilha da liberdade", campo autônomo e lúdico de apropriação e experimentação estética e discursiva - acaba, entretanto, por legitimar seu oposto - o cotidiano infernal, mas banalizado, onde a submissão, a exploração e a exclusão revelam um lado da cultura menos atraente, mas responsável por alguns de seus aspectos mais determinantes.


Embora idealmente indesejada, a autonomia é uma necessidade assegurada institucionalmente para a existência da arte em condições desfavoráveis a ela. A simples existência "autorizada" destas instituições, no entanto, sugere o aspecto não nocivo e ordinário, do ponto de vista político e econômico, da produção cultural que estão encarregadas de abrigar. Com efeito, a arte, como em alguns aspectos o esporte, revela-se um campo necessário para a preservação da ordem e do estado geral de coisas, de modo que é, portanto, indiretamente instrumentalizada: algo de que "o sistema" consolidado se utiliza e necessita para sustentar a possibilidade de formas culturais absurdamente contraditórias, dependentes umas das outras, em um mesmo período.

Julgo importante destacar este ponto para melhor compreender o modo como a própria noção de autonomia é operacionalizada e, por conseguinte, como essa operacionalização, ao alterar e direcionar o sentido de propostas poéticas, pode ser, na medida em que reconhecida, recuperada, revertida, apropriada e/ou aproveitada. Entre a inocuidade de propostas poéticas que parecem uma espécie de consolo ou lamento pelo mal-estar generalizado da modernidade, ou uma atualização da política de pão e circo,  pura celebração; entre a espetacularização e o engajamento político; entre os nomes de artistas que convertem-se em grifes, e a lavagem de dinheiro, a minha suspeita é que o campo permite, pela própria estranheza de seu lugar, tipos de potência muito distintos dos mais usuais. Compreender esse mecanismo não é fácil e escrevendo estes textos admito não querer esclarecer tanto a meu leitor ou leitora quanto a mim mesmo.

Não há dúvida de que atuam no meio artístico muitas pessoas com consciência política, senso crítico e interesse efetivo em produções não ordinárias, ou, para pôr de outra forma, produções que escapem às tendências homogeneizantes da indústria cultural. Daí haver espaço nas instituições para propostas poéticas críticas, muitas das quais chegam a questionar os próprios moldes institucionais, muitas vezes de modo irônico, contraditório e problemático. É o interesse por esse tipo de proposta que me orienta, na primeira parte desse texto, e em minha vida pessoal, a pensar a produção cotidiana como possibilidade de arte.