sexta-feira, 16 de julho de 2010

O prazer na arte

A não existência de uma definição consensual do que seja arte não é segredo. Nem impedimento para que sejam realizadas a todo instante avaliações com relação à qualidade e à legitimidade das obras propostas como arte. Naturalmente, por essa sua indefinição mesmo, os critérios utilizados nestas avaliações são diversos. E foram também diversos em diferentes épocas. Alguns elementos, no entanto, permaneceram bastante centrais, de modo que, segundo a reivindicação de muitos autores, sua vigência pudesse ser verificada no decorrer de toda a história da arte. Foi assim com as noções de gosto e prazer, com as quais apenas recentemente, durante a passagem da arte moderna à contemporânea, pudemos verificar movimentos de ruptura. Mas, com maior ou menor propriedade, insistimos muitas vezes em considerar o prazer que determinadas obras proporcionam ou deixam de proporcionar, como um critério válido para a avaliação da arte, e invariavelmente dizemos que gostamos ou deixamos de gostar de determinadas obras. Se ao menos dessa forma a questão sobrevive, deve ser pertinente que se façam algumas observações de modo a chamar atenção para a alteração da forma pela qual prazer e gosto podem ser pensados na contemporaneidade. O que se pretende com a investigação da questão é uma revisão da noção de experiência estética, e da possibilidade de reiterá-la como elemento central à arte.

Há cerca de dois mil e quatrocentos anos, como revela Platão em Hípias Maior, a obra de arte era avaliada principalmente de acordo com a função que cumpria. Assim, podemos considerar que o bom desempenho da função a que a obra se destinava era tido como prazeroso¹. Mas, como teorizado mais tarde por inúmeros pensadores, para além deste prazer relacionado ao bom desempenho da obra, o prazer oriundo do trabalho artístico guardava especificidades correlatas ao prazer da contemplação da natureza. As artes eram, assim, atividades de alguma maneira distintas das demais. Será apenas no século XVIII com o advento da Estética que esta dimensão se fará verdadeiramente consciente - e será, como veremos, absolutamente exacerbada; resulta daí o reconhecimento de um valor na arte "em si mesma" (poderíamos falar do reconhecimento do desinteresse e da "finalidade sem fim" que sempre existira na arte, o valor que, para além de todo uso, ela possui "em si própria"² desde as pinturas das cavernas de Lascaux e das estátuas e cerâmicas gregas até as obras de cunho religioso pintadas pelos "grandes mestres" europeus), e da elevação do estatuto da experiência propiciada por uma obra à elemento definidor do que é ou deixa de ser arte. Para a contemporaneidade, o fato de que tenha-se falado desde o princípio da experiência estética em termos de "prazer" ou "deleite", torna-se um problema.

Ao pretender distanciar-se da questão do gosto, a arte deve aproximar-se daquele legume que aos olhos da criança parece estranho, ainda mais quando a mãe diz que é necessário que coma, independente do fato de não gostar, "porque faz bem". Estamos sempre preocupados com o acesso das pessoas às obras de arte (estamos, certo?), mas por que é que a arte é boa ou "faz bem" pra alguém? Obviamente esta é uma questão que não se colocava quando ela possuía uma função prática a exercer. Nem tanto durante o período em que o "belo" permanecia uma questão central, já que nesse caso ela proporcionava prazer, e o prazer, como se sabe, é um interesse natural. O valor da obra era o de sua própria contemplação, do próprio deslumbre que ela -a obra - era capaz de proporcionar. Hoje toda coisa quer ser artística, mas apenas na medida em que pretende ser bela e deslumbrante, ou capaz de proporcionar o que quer que se entenda como uma 'experiência estética'. Resulta daí que nosso entorno encontra-se totalmente saturado pelas produções de setores interessados em gerar este deslumbre, como é o caso da publicidade, do design e da moda. É um tanto quanto inconcebível, para nós, imaginar o que era a apreciação de um retrato, uma imagem paralisada e pomposamente emoldurada na parede, em um período anterior à fotografia. O prazer da arte durante este período está certamente relacionado a este poder de fascínio que deveria exercer sobre as sensibilidades. É verdade que uma capela sistina, e uma poderosa orquestra sinfônica, por exemplo, ainda exercem algum poder dessa ordem, mas estamos historicamente afastados e nossa apreciação hoje é totalmente outra. Hoje, a expectativa de obter com obras de arte algo como deleite imediato revela-se frustrante.

A "experiência estética", embora tenha surgido no século XVIII foi, como sugerimos, “provavelmente praticada pela maioria das pessoas em quase todos os períodos da História” (Harold Osborne. Estética e teoria da Arte) e, embora nunca tenha tido uma conceituação consensual, era, como se costuma descrever, agradável, prazerosa, afetiva e "válida por si mesma". O crítico Walter Pater, por exemplo, dirá em 1877 sobre as pinturas: “as qualidades essencialmente pictóricas precisam, antes de tudo, agradar aos sentidos, deleitá-los de maneira tão direta e sensual quanto um fragmento de cristal veneziano". De maneira semelhante, mas já apontando para um sentido transcendental, quase místico, Clive Bell defendia em 1913 que "A arte nos transporta do mundo das atividades humanas para um mundo de exaltação estética. Por um momento, somos isolados dos interesses humanos; nossas esperanças e recordações são interrompidas; somos erguidos acima do fluxo da vida". São críticos formalistas, como era também o mais conhecido crítico do século 20, Clement Greenberg. Embora o aspecto "formalista" seja o mais ressaltado da teoria destes pensadores, o interesse da crítica formalista em geral pela forma era oriundo de um desejo de objetividade crítica. O que realmente lhes interessava era que as obras produzissem uma experiência que fosse satisfatória, um tipo de experiência “válido por si mesmo” e que “não podia ser obtido a partir de nenhum outro tipo de atividade” (Clement Greenberg. “Pintura Modernista”). Greenberg chegará a considerar que o modernismo “tende ao valor estético, o valor estético como tal e como um fim último” (“A Necessidade do Formalismo”)

Mas, ainda na primeira metade do século XX, uma tendência bastante diversa começa a se anunciar; fenômeno que se evidenciará somente durante os anos 60 e 70.  Um exame minucioso das questões que interessavam a estes artistas foge em parte aos propósitos deste texto. Grosso modo, elas estavam relacionadas a uma reação ao período em que a arte esteve, como se convencionou dizer, distante da vida - isolada em museus e galerias e restrita a um circuito muito limitado de especialistas ou colecionadores. Nos interessa considerar especialmente que foi Marcel Duchamp, figura chave para a reflexão aqui proposta, a grande referência para este período em que se viu a necessidade de que a arte fosse crítica com relação a estas instâncias - para que elas deixassem de ser reguladoras, ou determinantes, da maneira como a arte vinha se realizando. Duchamp era conhecido principalmente pela sagacidade de seu pensamento, pela irreverência, pelas polêmicas de suas propostas, mas também pelo interesse em negar abertamente qualquer prazer estético que sua obra pudesse propiciar: "Um ponto que desejo muito esclarecer é que a escolha destes ‘ready-mades’ nunca foi ditada pelo deleite estético" (“A Propósito de Ready Mades", 1961). Mais tarde, meio em tom de zombaria, acrescenta: "Eu joguei o urinol nas suas caras como um desafio, e agora eles o admiram por sua beleza estética" (Cartas de Duchamp a Hans Richter, 1962). Suas obras, assim como a de muitos artistas pertencentes a movimentos que se seguiram, como o minimalismo, a pop-art e a arte conceitual, críticos formalistas como Clement Greenberg e, de maneira geral, todos os que valorizavam a experiência dos sentidos na apreciação da obra de arte, tiveram alguma dificuldade em acompanhar - ou as refutaram completamente.

As razões do artista, conforme nos conta, estavam relacionadas a uma revolta com o fato de que toda obra a partir de Courbet parecia interessada em explorar tão somente o lado físico da pintura (1): "Não se ensinava nenhuma noção de liberdade", indignava-se (H. B. CHIPP, 1999). Duchamp dizia que a arte deveria voltar-se de uma "expressão animal" para uma "expressão intelectual" - ela deveria voltar a estar "a serviço da mente". Certo que seu conhecido urinol (2) assim como qualquer outro de seus ready-mades não pode ser considerado capaz de "tocar", "comover" ou proporcionar algum prazer, ao menos não nos moldes da arte de até então. As proposições de Duchamp pedem uma percepção ampliada - a assimilação da apresentação de um objeto comum no interior de um espaço expositivo - o reconhecimento do contexto; seu maior efeito foi, certamente, o da desestabilização pelo próprio estranhamento da proposição. O interesse maior do artista, sem dúvida, era estimular o pensamento pela frustração da sensibilidade. Como considerou Arthur Danto, Duchamp “abriu para sempre as fronteiras entre arte e vida” (Arthur Danto, “Marcel Duchamp e o fim do gosto: Uma defesa da arte contemporânea”) escancarando a possibilidade de utilização de qualquer material para que o artista dissesse o que quer que pretendesse dizer (CHIPP, Teorias da arte Moderna p.399). A questão parece surgir quando, considerado o artista mais influente do século,  procedimentos semelhantes àqueles utilizados pelo artista tornam-se rotineiros. O estranhamento gerado pela obra de arte acaba tornando-se corriqueiro e a perplexidade, outrora fundamental, acaba reduzida a uma sensação vazia de banalidade ou engano (como bem demonstra a revolta de críticos como Affonso Romano Sant'Anna); É que o sentido destas obras não pode ser buscado meramente na sensação imediata que proporcionam.

Quer dizer, é verdade que propiciar algum tipo de fascínio sensível permanece sendo fundamental para alguns artistas contemporâneos, tais como Anish Kapoor, Bill Viola e Wolfgang Laib (3); ou que a perplexidade gerada pelo impacto sensível permanece constituindo a essência da poética de diversos artistas contemporâneos, freqüentemente polêmicos, tais como Stelarc, Orlan, Herman Nitsch, Damien Hirst e Abramovic (4), mas não se poderia dizer que o mérito das obras destes artistas reside meramente no arrebatamento ou impacto emocional que eventualmente geram, ou apenas na maneira como "tocam" seu público de maneira imediata. Está longe de ser um interesse, especialmente de artistas como estes últimos, que suas obras sejam propriamente "gostadas" por critérios de ordem puramente formais, perceptíveis imediatamente. Supõe-se de todo artista "pós-duchampiano" que além do interesse na reação sensível do público, estejam interessados na reflexão que elas permitem; que possam perceber reflexiva e criticamente a relação entre forma e conteúdo. Em muitos casos, é somente num segundo momento, como produto do conceito, que os sentidos mais profundos da obra se revelam. Não raro este segundo momento é o único que realmente importa (5) -fenômeno que em outra ocasião chamei "o desprezo do sensível". Assim, independentemente de causarem, de imediato, fascínio, perplexidade ou indiferença, estas propostas podem ser consideradas insensatas, gratuitas ou banais se suas razões forem inapreendidas ou demasiadamente rasas. O que equivale a dizer que a experiência sensível só possui valor de fato reconhecido quando envolve uma experiência intelectual com o qual concorde e que o justifique; quando o que é exibido sensivelmente encarna sentidos que tornam sua própria existência como obra de arte pertinente. Sem sobras.

Daí depreende-se que a experiência gratuita dos sentidos seja algo de valor artístico negativo já que o "gratuito", sendo "injustificado", evidencia uma discordância entre forma e conteúdo. Este é um fato que pode facilmente ser verificado na massiva maioria dos filmes melhor avaliados pela crítica especializada - as cenas não precisam ser absurdamente dinâmicas, repletas de efeitos e cores saturadas. Isso porque o estímulo gratuito da sensibilidade não é o maior interesse destas obras. No entanto, considerados "cults", "alternativos" ou "filmes de arte", eles não são, claramente, os mais populares. Antes da sugestão de que algo como uma "arte autêntica" seja para poucos, me parece óbvio que esse fenômeno se dê porque a experiência gratuita dos sentidos exige menos esforços do que aquelas obras que exigem raciocínio e percepção mais sutis. A própria existência da referida categoria "filmes de arte" sugere que os outros filmes, mal conseguindo disfarçar seu caráter publicitário e o objetivo de uma bilheteria recorde, sejam alguma outras coisa, entretenimento talvez.

O ponto é que enquanto os artistas se abrem à inúmeras possibilidades, inclusive a do desagradável, publicitários e designers convertem a satisfação dos sentidos - elevada ao nível de uma experiência de teor altamente prazerosa e transcendental, como se dizia da experiência estética - em fórmula para a promoção de produtos de indústrias diversas como a de moda, de cosméticos e de alimentos (6); às vezes vende-se a promessa de que o produto propiciará tal experiência e às vezes, o que parece exigir maior investimento, a própria propaganda se encarrega da missão de promovê-la ("imagina o produto?"). Se a coisa parece forçada ou não, não vem tanto ao caso; o fato de que respondemos a estes "chamados", consumindo, comprando e desejando possuir estas experiências, deve dizer algo do valor que elas possuem, ou que acreditamos que possuem. Trata-se, então, justamente do tipo de prazer imediato de qual a arte se viu desobrigada a proporcionar e, em última instância, de uma exploração do sensível, instintivo, inconsciente e, em suma, irracional no ser-humano. Ético ou não, o fato é que gostamos de nos excitar com estas experiências basicamente porque antes de racionais somos animais.

Estas são questões que deve-se ter em mente quando se considera o fato de que muitas pessoas "não gostam" da arte contemporânea. É óbvio que é mais fácil sentir prazer com o que é dado imediatamente, ou que não exige muito mais do que o fato de possuir olhos. É necessário sempre chamar a atenção para o fato de que a arte não se dá na superfície do que se apresenta, mas na experiência que fazemos da obra -uma experiência sensória e intelectual* (se por um lado à percepção visual segue nosso pensamento, não é apenas pensando que nos tornamos propriamente conscientes do que vemos? é possível que as coisas se dêem separadamente? a constituição desta experiência não seria dada justamente pelo entrelaçamento?). Assim, podemos pensar na recusa duchampiana que influenciou tão massivamente nossa contemporaneidade, a despeito do que tenha dito o próprio artista, não como uma recusa da dimensão estética como um todo, mas apenas na recusa dessa imediatez já a priori deleitosa que normalmente se lhe vincula. Uma concepção da experiência estética que inclua o exercício do pensamento não só é possível como desejável. Apenas dessa forma faz algum sentido falar em gosto ou prazer com relação à produção contemporânea: quando, como já propunha Kant, se assume a dimensão reflexiva da experiência estética como prazerosa - um prazer que se dá num jogo entre o que pode ser percebido sensivelmente e o intelecto, ou ainda, entre o entendimento e a imaginação. Nesse sentido, é de algum interesse resgatar o freqüentemente malhado pensamento de Clement Greenberg. Afinal o grande crítico formalista sempre dera ênfase à experiência da obra de arte- experiência a que se referia em termos de uma "experiência visual" - expressão que evidencia, na marcada ênfase dada à visualidade, o vínculo inevitável entre o conteúdo significante da experiência e a forma da obra. Contrário, portanto, ao que sugeria Duchamp, a "satisfação" que interessava ao crítico não se limitava à retina - o caráter intelectual dessa satisfação está bastante evidenciado em seus escritos; o formalismo evidenciava apenas que a necessidade de fixação à visualidade era a única maneira de se tratar propriamente de arte - do contrário a idéia operaria sobre ela mesma e se tornaria outra coisa - filosofia, talvez. Assim, podemos considerar que mais interessante do que recusar o formalismo, como se costuma fazer, seria amplificar seus alcances. Uma forma ampliada não poderia levar em conta todo o contexto de apresentação de uma obra? Embora costumemos nos referir à linguagens como pinturas, esculturas, gravuras, vídeos e fotografias como "artes visuais", vale ter em mente que, entendida a experiência como aqui proposto, todas são também conceituais. O que é diferente de considerar que "a arte existe apenas conceitualmente" como o fez Joseph Kosuth ou que a arte não "seja mais do que uma construção para fazer pensar"³, como mais recentemente considerou Marcia Tiburi. Estas simplificações sugerem a insignificância da matéria e da visualidade e apontam para a primazia da idéia na arte. A obra sempre foi "coisa mental", Duchamp apenas evidenciou este aspecto - o que muitos esquecem depois dele (não tanto ele, ironicamente) é que isso não implica a dispensação do retorno à forma, nem mesmo que seja apenas coisa mental. Com inspiração merleau-pontyana poderíamos considerar, talvez com maior propriedade, que ela é coisa corpórea. Na experiência de uma música não se dá conjuntamente a experiência intelectual e a experiência sensível? O som tem em si esta dupla dimensão - preferir o pensamento ao som é não ouvir o som. 


Natural, talvez por serem filósofos, que Kosuth e Tiburi, como aliás também Danto, verbalizem este suposto único valor racional da experiência da obra, mas em se tratando de arte e não de filosofia, me parece fazer pouco sentido que se acredite nessa suficiência conceitual. A arte precisa da matéria e a matéria, claro, é inseparáel do conceito, mas não é ele. É essa impossibilidade de apreensão exata do "conteúdo" que torna as grandes obras inesgotáveis. Os sentidos são múltiplos justamente pela riqueza da relação entre forma e conteúdo. Se toda a arte se realizasse em nível puramente conceitual - no puro exercício do raciocínio - teríamos filosofia e não mais arte; a visualidade nas artes visuais se converteria em obstáculo para o conceito - ruído. O que se está propondo, é a insensatez de se preferir o fato de sermos racionais, quando isto significa negar o fato de que somos animais - materiais e orgânicos. Racionalismo e irracionalismo são fundamentais à arte.

Mas, tendo em mente aquela variedade de critérios existentes para avaliação de obras a que fizemos menção no início deste texto, não faltam alternativas a este posicionamento de teor marcadamente racionalista com relação à produção contemporânea que parece mais ou menos em voga desde pelo menos os anos 60. Assim, agora que entendemos que gostar ou não de obras de arte pelo impacto imediato que ela pode, ou não, propiciar é em muitos casos pouco pertinente ou insuficiente para a compreensão dos sentidos da obra - e assim, para sua avaliação - devemos lembrar que não há impedimentos para que se considere essa imediatez fundamental. Com efeito, o crítico americano Donald Kuspit possui o hábito de considerar artistas conceituais, "pseudo-artistas", já que para ele o valor "estético-existencial" ou "orgânico e existencial" de que carecem muitas das propostas destes "impostores" é fundamental para a arte verdadeira. No entanto, nem de longe esta pode ser considerada uma posição padrão, já que, um tanto quanto radical, entra em choque constante com as correntes predominantes da arte contemporânea - minimalista e conceitual, por exemplo. De fato, minha sensação é de que este sentido a que fazem referência muitas destas vozes responsáveis pelo aspecto dissonante da atual produção crítica, parece haver se perdido de vista com o único interesse de se fazer críticas sociais e políticas - por mais interessantes que sejam sob estes aspectos; é o resultado natural da conversão de movimentos modernos que se sabiam excêntricos quando surgiram, em casos centrais e paradigmáticos.

A questão é que, ainda que se considere imprescindível a experiência sensível-imediata da obra de arte, como quer Kuspit, ela não deve importar de maneira exclusiva. Afinal, embora não concorde que o sentido de muitas obras esteja "fora do alcance do olhar" como considera Arthur Danto, é bem verdade que "só temos acesso a elas através de exercícios de interpretação bastante elaborados”. Se esses sentidos nos escapam, acredito, junto com Merleau -Ponty, é que precisamos reaprender a ver. Assim, a obra de arte deve ser pensada como um tipo de proposição que pede o corpo inteiro - corpo pensante. A obra impressiona continuamente, pela própria sensibilidade, o corpo e o pensamento, de maneira lógica e intuitiva, nos fazendo acessar sentidos que podem apenas ser experienciados. O sensível, portanto, não pode ser tomado de maneira isolada, como um mero meio para um fim, mas como possuindo, ao mesmo tempo, um fim que lhe seja próprio. Ou seja, o horror, o espanto ou o estranhamento do enfrentamento, em um museu, com um urinol ou com um corpo animal em putrefação ou com alguém que se deforma ou se debate, não pode ser relevado - ele é parte da experiência artística. Acreditar na suficiência de conceitos é ignorar a diferença de intensidade entre se deparar em um museu com uma destas obras e ver um registro dela em um livro ou pela internet. A obra de arte exige a presença do corpo - não apenas o pensamento, como a filosofia comum - acadêmica -, nem apenas a dimensão sensual, como geralmente a publicidade. Cada vez me parece mais claro que a justeza ou adequação entre o que se apresenta sensivelmente (a forma) e o conceito (o conteúdo) é definidor da qualidade da obra, simplesmente porque se relaciona com o valor de verdade da proposta; um não leva ao outro; ambos são partes de um mesmo sentido. Se há incoerência é que a obra deve ser ruim. Conferir importância ao poder evocativo dos dados sensíveis da obra é saber que ele torna algo mais palatável e acessível, juntamente com o conceito, de maneira intuitiva, sensível e imediata, tudo o que é anterior ou contrário à própria razão. Por isso não é sensato que se queira compreender racional e completamente a obra de arte. Ela não é filosofia e, quando em determinadas propostas conceituais dela se aproxima, não só a visualidade, no caso das artes visuais, corre o risco de converte-se em obstáculo para se chegar à idéia, seu real e único interesse, mas em desculpa para um discurso mal formulado, incompleto ou raso. Quando os conceitos são tão claros, textos dissertativo-argumentativos são muito mais adequados para a explicitação de sentidos. A visualidade nas artes visuais, como o som, na música e as palavras na poesia, são o que permitem a inesgotabilidade da obra de arte, já que existem precisamente para o que não se sabe, ou melhor dizendo, para o que não pode ser objetivado em conceitos específicos; pela abertura que permitem; explicitam sentidos em cadências, ritmos, matizes e em tudo que não pode ser propriamente comunicado. Por isso ver reproduções de obras dotadas de significativo valor estético é diferente de vê-las "ao vivo" - é necessário sentí-las pensando, experienciá-las por completo, para aí perceber seus sentidos. Obras conceituais interessadas apenas na idéia geralmente dispensam esta experiência do corpo, como aliás faz questão de explicitar Joseph Kosuth em seu texto "Art after Philosophy". Não diria que, neste caso, não são obras de arte, como sugere Kuspit, mas que são obras menos interessantes, piores até, certamente.

Deve ser, enfim, por algo diferente do puro arrebatamento de uma experiência sensível - e também do puro raciocínio - que se deve conduzir os sentidos todos e a mente ao museu, ao teatro ou pra onde quer que esteja a arte para experimentá-la. O modo potencialmente totalizador da experiência que não nega corpo, sentidos, pensamento e - porque não? - espírito, deve fazer valer o esforço. No mínimo nos tornamos menos ríspidos e mais abertos à tudo aquilo que existe sem possuir um sentido aparente, como a própria vida.
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¹Devemos considerar que antes das "artes liberais" havia pouca distinção entre as atividades que hoje consideramos arte, e práticas como a navegação e a medicina, por exemplo. Eram todas igualmente pragmáticas. Poderíamos considerar então que o prazer propiciado por uma escultura seria oriundo do sucesso na representação do ídolo, de sua serventia para adoração ou ainda na adequada descrição de um determinado episódio mítico, da mesma maneira que o prazer envolvido na construção de um navio seria oriundo de sua navegação ou não afundamento. A separação vai ocorrer apenas no século XVIII com a criação da categoria "Belas Artes" ou "Artes" reunindo atividades tão distintas como pintura, música e dança. A reunião destas atividades sob um mesmo termo sugere a identificação de pontos em comum. Defendeu-se inicialmente que todas imitariam a natureza e, mais tarde, que o tipo de experiência que permitiriam era de alguma maneira diverso da experiência feita de outras coisas. É aí, finalmente, que podemos pensar num tipo de prazer propiciado pela escultura diverso do prazer propiciado pela construção de um navio.

² Uso "em si própria" e "em si mesma" entre aspas porque não deve existir isso de algo que tenha qualquer espécie de valor fechado em si. A experiência da coisa é feita a partir de um sujeito e só se dá em relação com ela. O que se quer dizer é que a experiência da coisa (tanto por parte do produtor quanto do público) possui sentidos significantes que, entendidos como valores, independem de qualquer eventual uso que a coisa possa ter. Que a coisa por ela mesma de alguma maneira se basta exigindo do sujeito apenas uma abertura para uma relação que é sem fim outro que a própria relação.

³"Que a arte mova nossa sensibilidade é a esperança sem fundamentos de muitos, mas sensibilidade é uma formulação imprecisa entre o perigoso culto da emoção e os sentimentos que só são elaborados mediante a interferência da racionalidade capaz de criar conceitos. Não há chance de que arte hoje seja mais do que uma construção para fazer pensar...". "O luto da arte". Revista Cult. Ano 13. nº 145. Pg. 42.


* Me parece particularmente interessante, embora não sem problemas, a definição de experiência estética de Suzanne Langer: "A alegria de uma experiência estética direta indica a que profundidade da mentalidade humana essa experiência chega. Pode-se dizer verdadeiramente que uma obra de arte, ou qualquer coisa que nos afeta como o faz a arte, 'provoca algo em nós', porém não no sentido usual— dar-nos emoções e estados de ânimo — que é negado, e com razão, pelos estetas. O que ela provoca em nós é uma formulação de nossas concepções de sentimento e nossas concepções da realidade visual, factual e audível, em conjunto. Ela nos dá formas de imaginação e formas de sentimento, inseparavelmente; quer dizer, clarifica e organiza a própria intuição. É por isso que ela tem a força de uma revelação e inspira um sentimento de profunda satisfação intelectual, embora não suscite qualquer trabalho intelectual consciente (raciocínio). A intuição estética apreende a forma maior e, portanto, a significação principal, imediatamente; não há necessidade de trabalhar através de idéias menores e implicações cerradas em primeiro lugar sem uma visão do todo, como no raciocínio discursivo, onde a intuição total de relacionamento vem na conclusão, como um prêmio. Na arte, é o impacto do todo, a revelação imediata da significação vital, que age como chamariz psicológico de uma longa contemplação." Suzanne Langer. Sentimento e Forma

1._Erich Heckel. Moinho Perto de Dangast, 1909.


















_Emil Nolde. Mar no Outono, 1910.


2.
_Marcel Duchamp. A Fonte, 1917.



















3.
_Anish Kapoor - Cloud Gate, 2004
_Bill Viola - A Travessia, 1996.













_Wolfgang Laib - Pollen de Hazelnut, 2002.














4.
_Orlan e Stelarc. Body artists.













_Herman Nitsch. Six Day Play, video still.




















_Damien Hirst. Touro, 2007.




















_Marina Abramovic. Expanding in Space, 1977




5.
_Hans Haacke - Helmsboro Country, 1990.















6.
_Gucci




_Lacta