terça-feira, 21 de agosto de 2012

citações

“A ficção não é considerada como fazendo parte do mundo. O racionalismo confina a ficção ao domínio das categorias literárias para proteger seus próprios interesses, seus próprios sistemas de saber”
Robert Smithson

"Tento efetivamente privilegiar modos de escrever a história, modos de apresentar as situações, de agenciar os enunciados, modos de constituir as relações entre causa e efeito, ou entre antecedente e consequente, que perturbem as referências tradicionais, os modos de apresentação dos objetos, de indução das significações, e dos esquemas causais que constroem a inteligibilidade standard da história. Um discurso teórico é sempre uma forma estética, uma reconfiguração sensível dos dados sobre os quais ele argumenta. Reivindicar o caráter poético de qualquer enunciado teórico também é contestar as fronteiras e as hierarquias entre os níveis de discurso. O que nos remete para o nosso ponto de partida."
Jacques Rancière


“‘Ao invés de lançarmos indiscriminadamente nossas pedras sobre os produtos artísticos dos quais as classes opressoras econômica, política e culturalmente se assenhoram, não seria mais revolucionário culturalmente fazer incidir um dos focos de luta contra valores estéticos que a classe dominante defende como eternos e imutáveis e através dos quais sua impostação de superioridade se perpetua?’


Alegar que a arte é supérflua fundamentando-se no entendimento de que ela é elitista contribui para que a arte continue sendo instrumentalizada por poucos. Isso ‘não apenas não é justo, como também, e isso nos parece o mais importante, não é estratégico como forma de luta. Não se quer com isso afirmar que a arte pode, por si só, mudar o curso da história, mas pode isso sim, constituir-se num elemento ativo desta mudança". (Santaella, L. Arte e cultura: equívocos do elitismo. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1995. Biblioteca da educação. Sperie 7. Arte e Cultura; v1. 115p.)



Parece ser que es uma dificultad típica de nuestra época. Sólo hay uma elección posible que desemboca em dos métodos igualmente extremos: o bien plantear una realidad enteramente permeable a la historia y hacer ideología, o bien, por el contrario, plantear uma realidad que es em última instancia impenetrable, irreductible y, em este caso, hacer poesía. Em suma todavía no veo posible una síntesis de ideología y poesia (por poesía entiendo, de manera muy general, la búsqueda del sentido inalienable de las cosas). Roland Barthes, Mitologías, 1957.



“toda arte nasce de uma concepção ideológica do mundo; uma obra de arte inteiramente desprovida de conteúdo ideológico é coisa que não existe.” (G. Plekhanov)


"A arte é alérgica a qualquer tipo de recaída no âmbito do mágico, é parte do desencantamento do mundo, para utilizar a expressão de Max Weber. Está inextricavelmente  vinculada à racionalização. Todos os meios e métodos de produção que a arte tem a sua disposição derivam deste nexo". Adorno



 “...o trabalho do artista, mesmo na sua parte mental , não pode se reduzir às operações de um pensamento determinante. De uma parte a matéria, os meios, o instante, e uma porção de acidentes ( os quais caracteriza o real, ao menos para aquele que não é filósofo) introduzem na fabricação de uma obra uma quantidade de condições que não somente introduzem o imprevisto e o indeterminado no drama da criação, como tendem a torna-la racionalmente inconcebível, uma vez que a inserem no domínio das coisas, pois ela se torna uma coisa, de modo que o pensamento se torna sensível. [...] O artista não pode abrir mão de um sentimento arbitrário. Ele procede do arbitrário em direção à uma necessidade, e de certa desordem em direção a uma certa ordem...”
p. Valéry.

 “O projeto de pesquisa em artes visuais, equivaleria a um projétil, algo que é lançado com uma mira. Mas o caminho exato que irá percorrer nunca sabemos. Pierre Soulages, declara que ‘o que faço me esclarece o que procuro’ revelando de certo modo a cegueira do artista no processo de criação [...]” (Rey, Sandra. Da prática à teoria: três instâncias metodológicas sobre a pesquisa em poéticas visuais)

[Poetry] may make us from time to time a little more aware of the deeper, unnamed feelings which form the substratum of our being, to which we rarely penetrate; for our lives are mostly a constant evasion of ourselves.
T.S.Eliot

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A ruína assistida e o lugar do prazer na arte contemporânea - questões para além da crítica

O prazer é uma potência da arte historicamente assegurada pela tradição moderna e é uma das maiores causas de nosso interesse pela arte. Se tradicionalmente, no entanto, a experiência estética foi considerada transformadora e transcendente, capaz de propiciar portanto um tipo de prazer mais elevado do que o propiciado pelas demais atividades humanas, hoje o tipo de prazer que ela proporciona já não é bem claro. A noção tradicional de experiência estética foi em grande medida recusada, e ao invés de satisfazer o gosto pelo belo, agora o prazer da arte parece em grande medida ser o prazer da crítica, da ironia, da precariedade, do sadismo e da ruína assistida. Como a questão do prazer pode ser propriamente considerada nestas condições? Antes, é possível que seja? Acredito que sim.

*
Devido à posição elevada tradicionalmente conferida à experiência propiciada pela obra de arte, costumamos manter com ela uma relação marcadamente respeitosa. Este respeito pode ser percebido no arranjo formal da grande maioria das propostas curatoriais (limpas e muito bem organizadas, com distância razoável entre as obras, ainda dentro do modelo sugerido pelo "cubo branco", espaço neutro tradicional da arte), assim como na arquitetura mais ou menos suntuosa de grande parte dos espaços de arte, e especialmente em nossa própria atitude quando somos público. Nestas condições, falamos baixinho e mesmo quando podemos tocar nas obras, não o fazemos sem hesitação - em alguns lugares, sabemos que a aproximação excessiva faz disparar alarmes! Com isso, o suposto sentido transcendente da arte funde-se à garantia de seu prestígio social e de sua valorização econômica. A verdade é que em nossos dias desconfiamos tanto de uma coisa quanto de outra, de modo que a maioria de nós demonstre pelos próprios julgamentos apressados não achar no fundo a arte tão admirável assim. Invariavelmente, no entanto, buscamos considerar formas de inteligência nem sempre imediatamente reconhecidas, mas pela própria instituição, supostas. Permitimos que mesmo as propostas mais incômodas nos façam rever possíveis expectativas indevidas e cultivamos, dessa forma, nosso gosto pela arte. Forçamos muitas vezes a barra na busca de identificar razões para apreciar o que se apresenta - sentidos que suplantem eventuais frustrações. Nem sempre conseguimos - o que não necessariamente significa tratar-se de arte ruim. Para além de obras particulares, certas exposições como um todo contrariam os ideais do cubo branco e revelam-se, pelo próprio projeto curatorial, marcadamente precárias, repugnantes até: todo o polimento e a pretensa seriedade do espaço de arte são recusadas. Se era a distinção da arte a responsável pela admiração e respeito inicial, à recusa da distinção segue muitas vezes a perda do respeito e a incapacidade de admiração. Com ares de nostalgia com relação aos grandes mestres e gênios do passado lamenta-se a "banalização da arte", como se fosse um grave problema o fato de que estes adjetivos não se apliquem aos artistas atuais.

Na realidade, no entanto, desde algum tempo a arte tem usado de seu lugar tradicional de sedução para fazer admirar o que não costumamos admirar. Nesse sentido, pra muito além da aceitação imediata, ou do mero comprazimento do gosto, interessa à arte a admiração crítica. O prazer da arte contemporânea, é um prazer da experiência crítica, o que obviamente não ocorre em detrimento da experiência sensível, pelo menos não nos casos mais interessantes.

O desenvolvimento de nossa capacidade crítica é indissociável do desenvolvimento da modernidade. A mudança da forma de nossa admiração pela arte é acentuada já durante o século 19, quando Hegel afirmou que já não veneramos obras de arte como divinas e que nossa atitude diante das obras de arte havia se tornado fria e refletida: “o pensamento e a reflexão sobrepujaram a bela arte”, afirma o filósofo. Para Hegel, a modernidade era desfavorável à arte. De fato, com a modernidade a própria promessa de transcendência passa a ser explorada. Como mais tarde escreveu Adorno referindo-se à conhecida expressão de Weber: “a arte é alérgica a qualquer tipo de recaída no âmbito do mágico, é parte do desencantamento do mundo” e está “inextricavelmente vinculada ao processo de racionalização”. Se este é um fato incontornável, somos decerto ingênuos se desejamos na modernidade admiração sem crítica: é a própria arte que demonstra que esta não é uma possibilidade ao homem moderno.

Pelo contrário, é o exercício da crítica que devemos admirar; não tanto aquela que está além de nós mesmos, a que chamam “especializada” e que pode muito bem nos ajudar a pensar (não é vergonha reconhecer que há olhares mais treinados do que os nossos), mas sobretudo a nossa capacidade crítica, já que é a partir dela que nossos olhos alcançam pela forma proposta o processo, também crítico, de produção da obra. A admiração da arte é nesse sentido uma admiração de nossa inteligência, das áreas da mente que a forma proposta nos faz percorrer, e que o faz por remeter à experiência crítica do momento de produção da obra. Se esta percepção de processo de produção da obra é imediata no caso de performances musicais ou no teatro, nas formas mais tradicionais das artes visuais, tais como pintura e escultura, há uma conhecida distância. A obra se apresenta como trabalho pronto, objeto acabado, resultado a ser contemplado mesmo muito tempo após o momento de produção das obras. Se por um lado, a permanência destas obras é o motivo do evidente interesse histórico das artes visuais (o que podemos verificar pelo privilegio dado a elas pelas histórias da arte mais tradicionais), ela também é o que facilita sua gradual instrumentalização. Nesse sentido, é possível pensar o interesse pela performance nas artes visuais como oriundo de um interesse crítico em suplantar esta possível distância entre processo de produção da obra, e experiência da obra por parte do público (a importância de textos como "A Arte como Experiência" de John Dewey para artistas como Alan Kaprow, assim como de textos de autores como Adorno, Horkheimer e Guy Debord, para os chamados artistas conceituais, é reveladora).

No entanto, mesmo no caso de pinturas e esculturas, a apreciação da arte em sua dimensão processual é fundamental. Há, por exemplo, um tempo instaurado no movimento de uma pincelada e nela, certo esforço de produção a ser considerado. A percepção espacial deste tempo, tanto em elaborados esquemas perspectivos mais ou menos complexos, quanto no movimento de uma pincelada, tem a ver com a percepção da fatura da obra; esta percepção intuitiva e imediata é em grande medida o que torna a experiência estética sedutora intelectual e sensivelmente, talvez até o que justifique seu sentido transcendente: a percepção formal atualiza a experiência artística de modo particular e nega oposições entre elementos como razão e sensibilidade; elementos que nas demais zonas de nossa vida prática parecem absolutamente dissociados. De todo modo, em muitas propostas modernas a experiência crítica da produção da obra é pelo próprio desenvolvimento da modernidade distendida: ao invés de limitar-se, por exemplo, às propriedades pictóricas dos materiais mais convencionais, passa-se a questionar a representação, o uso de tintas, a moldura, o lugar tradicional da arte etc. Isso ocorre a tal ponto que o intervalo entre os momentos de produção de uma obra e outra, momentos em que o artista simplesmente vive, é em alguns casos também considerado com interesse artístico. É o que permite supor o projeto de tomar a vida como obra de arte: se a dimensão processual da arte realmente importa, este intervalo não seria de menor importância, como a forma do que se produz aí.

No entanto, o que se produz no intervalo de vida entre os momentos de produção de uma obra e outra, embora possa ser tomado com algum interesse, o que ocorre, por exemplo, quando lemos as cartas de Van Gogh a seu irmão, não é proposto à nossa percepção crítica como arte. Esta economia é decerto fruto do reconhecimento dos alcances muito limitados do trabalho de arte. A despeito de nossas intenções, por suas próprias condições, não parece haver como a vida ser tomada como arte. A arte ocorre nos momentos particulares em que a vida se consagra pela experiência, não como algo mítico, mas como algo que crítica alguma, por mais perspicaz que seja, é capaz de engolir, esvaziar, ou compreender completamente. O interesse pela arte vem justamente daí, do prazer oriundo do fato de que a admiração crítica do trabalho de arte por mais rica que seja, é insuficiente para abarcar todos os sentidos da obra. Posto de outra forma, os espaços que a obra abre são mais amplos do que nossa habilidade de percorrê-los. Por isso diz-se que arte "boa" seja inesgotável, e por isso é interessante considerar a autonomização da arte como uma decorrência necessária para a manutenção da arte após o momento em que ela se afasta da religião. Nossa existência estética, nossa vida em corpo, assim como nossas produções estéticas mais cotidianas não resistem, por seus interesses, à admiração crítica a que a arte se propõe (embora esse seja o grande projeto moderno e contemporâneo - com isso quero sugerir continuidade ao invés de ruptura). Por isso, com o desenvolvimento da modernidade e da racionalidade, e com o gradual descolamento entre arte e religião, os altos ideais da arte exigiram lugares e momentos específicos para realizar-se: as cortes, os limites de telas, a proteção de uma instituição autônoma. Obviamente, as decorrências (econômicas e sociais) da realização da arte em um campo afastado, de um lado, da religião, e de outro, ao menos pretensamente, da vida prática, foram fatalidades: no contexto político e econômico vigente, a história demonstrou a impossibilidade de afastamento dos interesses mais imediatos da vida prática; como bem exemplifica o uso comercial de registros de obras conceituais dos anos 60 e 70, mesmo as investidas mais críticas da arte foram logo instrumentalizadas. Hoje, a mesma percepção crítica que afastou a arte da religião, desligando-a da divindade, tende a conectá-la ainda mais à terra (o processo moderno de desencantamento não tem fim), negando muitas vezes qualquer possibilidade de transcendência e destacando, em seu lugar, os sentidos econômicos e políticos que, de modo direto ou indireto, faz ver.

O projeto de aproximação entre arte e vida torna impossível que uma pintura seja hoje admirada sem que se considere questões sociais e econômicas. Para uma percepção da arte “em campo ampliado”, sua forma não está dissociada da forma do próprio circuito que integra. Por isso, a mesma percepção formal que permite reconhecer o trabalho crítico relacionado à fatura da obra num nível físico, hoje busca reconhecer o mesmo tipo de trabalho crítico exercido em um campo mais extenso. É por isso que muitas vezes o interesse físico da pintura, relação entre cores, por exemplo, é suplantado por percepções que englobam problemáticas econômicas e sociais (é a física da arte que se amplia para o campo político e social). Como decorrência desta tendência inevitável à crítica, a pintura é muitas vezes tomada de modo contraditório, ou absolutamente negada. 

O sentimento generalizado é que em muitos aspectos a arte avança no sentido de adensar-se cada vez mais em direção ao desencantamento, à racionalidade calculável e conceitual, quando é na realidade coisa encantada, intuitiva e sensível. Mas a oposição entre racionalidade e encantamento tem sido problematizada na própria arte há algum tempo. A bem da verdade, mesmo na antiguidade, a arte sempre foi, na medida em que estética, bem material, e esteve por isso presa às leis da física, mesmo quando não eram bem conhecidas. Agora que regulações supostamente mais concretas e determinantes, sejam elas de ordem física, histórica, econômica ou social, se fazem conhecidas, o desafio é apontar para além desta aridez.

O encantamento pode ser considerado em todos os momentos da arte pela preservação constante de uma dimensão utópica: enquanto esteve conectada à mitologia e à religiosidade; quando o ideal de um campo autônomo foi constituído; e quando foi negado, com o projeto de aproximação entre arte e vida. A utopia que marcou o início do modernismo foi a utopia estética que na pintura aparecia de modo exemplar na exploração de sua fisicalidade – o que se relaciona tanto ao reconhecimento do plano da tela, quanto aos incansáveis estudos de cor dos modernistas. Com isso, é a própria crise da modernidade e da utopia do plano e da cor que revelam o deslocamento da questão do prazer da arte. Se é legítimo questionar-se acerca do prazer na arte contemporânea, devemos buscá-lo na utopia que levou a este desmantelamento: a utopia de fusão entre arte e vida. Não é acaso que os ready-mades de Duchamp sejam marcos tão fundamentais à produção contemporânea, assim como as colagens de Picasso, os rasgos de Fontana, o pop de Warhol, a caixa de sapato de Orozco e, mais recentemente, a pichação, proposta por curadores como Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos na vigésima nona Bienal de São Paulo, e o funk e a imundície, propostos por Clarissa Diniz e Paulo Herkenhoff, na Contrapensamento Selvagem, parte da exibição Caos e Efeito, no Itaú Cultural, também em São Paulo. Me parece de especial interesse nestes últimos casos que o papel propositivo dos curadores seja mais destacado do que o dos autores das obras em particular. Uma vez que artistas estão tanto dentro quanto fora do campo institucional da arte, em toda parte, os curadores são os que se vêem em condições privilegiadas de articular e visibilizar propostas de maior porte e densidade, reconhecendo arte onde acham mais urgente a necessidade de admiração crítica. Enquanto projeto político, é enfim um prazer que o campo institucional da arte permita enfrentamento das coisas que causam desconforto. Não há com isso tudo qualquer sinal de decadência, mas de um longo caminho a percorrer. Quanta coisa precisa mudar pra que a admiração destas coisas não nos cause desconforto? e se algo precisa mesmo mudar, esta necessidade se coloca no outro ou em nós?

segunda-feira, 6 de agosto de 2012