sábado, 18 de maio de 2013

Esboço da vida e da cultura segundo o modelo quantico

Esquema: A cultura humana constitui algo como um corpo orgânico-energético e dinâmico que se desenvolve ao redor de um núcleo. A maioria das vidas humanas tem a maior parte do tempo ocupado na busca de saciamento de necessidades e interesses muito fundamentais, tais como alimentação e moradia, de modo que na grande maioria dos casos, ela se desenvolve sem grandes chances de distanciamento do núcleo mais básico de nossa cultura; na realidade, é justamente este conglomerado de pessoas, com suas práticas, seus costumes e espaços, que constitui o centro de nossa cultura. Todo o funcionamento da cultura depende da atividade desse núcleo, que está, então, em constante movimento. Aí identificados, estes homens e mulheres possuem mais certezas - porque, pela falta de oportunidade de distanciamento, questionam menos -, e jogam sem menos problemas de acordo com as cartas dadas. Eu e meu leitor, pelo próprio movimento proposto por este texto, estamos entre aquela minoria que possui a oportunidade de se desenvolver um tanto além do núcleo mais básico da cultura. Assim, a desigualdade social é elemento estruturante da cultura, o que não digo pretendendo indicar uma oposição entre alta e baixa cultura, mas sim, nos termos de Foucault, entre heterotopias, nas margens e nas periferias, e discursos hegemônicos e normativos, no centro. De todo modo, nem sempre encontramos em nossas práticas, que exigem geralmente trabalho  mecânico, condições de realizar as eventuais potencialidades descobertas nestes possíveis momentos de distanciamento, de modo que é por algo como uma exigência do sistema já estruturado que permanecemos muito facilmente à margem de nós mesmos. Aí vivemos o conflito entre liberdade e necessidade. Mas enquanto elementos relativos ao núcleo de nossa cultura, tais como a primazia de interesses econômicos sobre quaisquer outros valores e a força de discursos fundamentalistas e intolerantes, nos causam alguma inconformidade e sofrimento, ao mesmo tempo, muitos de nós desejam ajustar-se, muitas vezes com o auxílio de medicamentos e terapias, como se o mal-estar provocado pelo movimento de distanciamento que é próprio do processo de desenvolvimento da consciência pudesse e devesse ser suprimido, como se fosse possível nunca mais retornar às alturas a que um dia se elevou. Outros assumem o desajuste para mover o corpo e alterar a prática, para de fato encarnar os pontos mais distantes do núcleo da cultura e confrontar os discursos hegemônicos, tornando as relações de poder mais justas, ampliando a esfera da liberdade em nossa cultura, e deslocando, no limite, o centro a partir dos quais emanam todos os discursos e toda constituição formal da vida na Terra.

  • Já foi uma crença presente na origem da modernidade que pelo desenvolvimento da cultura uma nova natureza humana poderia ser artificialmente criada - o que talvez no limite se relacione ao desejo de escapar à condição terrena e mesmo à morte (estes outros elementos nucleares e norteadores do modo como vivemos). Na arte, se encontra nesse âmbito a questão da autonomia (quando se admitiu a arte desvinculada dos papéis práticos que cumpria socialmente, como em ritos e cerimônias religiosas, assim como da ideia de copia ou representação da natureza, o que evidenciava, mesmo por uma atenção crescente à técnica e ao estilo, a fé do homem em sua própria capacidade criativa, ou ao menos o reconhecimento de um valor significativo em produções genuinamente humanas), e, de modo mais específico, o posterior desenvolvimento da chamada arte abstrata (ainda que, na esteira do pensamento romântico, as noções de natureza e de Deus fossem muitas vezes reivindicadas no próprio homem), em particular aquela de formas geométricas e cunho racionalista. Desde pelo menos as grandes guerras, no entanto, a pretensão de criar um novo homem rompendo com a ordem natural e orgânica do mundo nos parece falida, embora em muitos campos nossa prática permaneça aí compreendida, em particular em certos ramos da ciência. Nesse sentido, não apenas a arte, marcadamente com a virada concretismo > neoconcretismo, e também com o interesse crescente pela cultura oriental, mas também práticas mais gerais em nossa cultura tais como o  vegetarianismo, a homeopatia, a acupuntura, o indigenismo (com o qual se conjuga o interesse crescente pelo xamanismo), o zen e o yoga, por exemplo, se colocam não apenas como meras tendências de nossa cultura "supérflua e consumista", como consideram muitos críticos, mas como (não tão) novos núcleos ao redor dos quais nossa cultura tem se constituído desde pelo menos a chamada New Age.

Este corpo orgânico-energético e dinâmico da cultura também é nosso corpo, e os sentidos de seu desenvolvimento se revelam, portanto, em nossa prática cotidiana. A partir daí, minha sugestão é ajustar nossa prática cotidiana aos sentidos que nos parecem mais profundos, pela arte.

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Eu sei que o espírito que me anima não anima somente a mim e que há uma infinidade de outros seres que se movem em direção semelhante. Reconhecê-los me faz sentir-me menos sozinho, como parte de um organismo maior que, crendo-se independente, segundo um panorama mais geral, marcha com toda a espécie. Um conjunto desorganizado, é verdade, mas ainda assim um conjunto. Perceber este corpo orgânico maior que minha própria vida ajuda a constituir de modo particular me faz buscar investigar o sentido exato desta marcha, desprezar os sentidos mais desprezíveis, e desejar os mais...desejáveis.
Não creio tão absolutamente na autonomia do indivíduo. Ainda que se creia independente e muitas vezes solitário, sozinho, perceber a coerência relativa de modos de vida tão distintos entre si, os sentidos mais gerais de nossa aparente desorganização social, nos permite resgatar o sentimento tão necessário de pertencimento, ainda que aquilo a que se descubra pertencer não seja tão louvável. Se não é louvável e pertencemos, podemos ao menos reivindicar outros sentidos.

Se vamos reivindicar sentidos mais desejáveis, que sentidos serão estes?

As possibilidades são ao mesmo tempo excessivas e insuficientes, ou ao menos confusas demais para que pareçam inteligíveis. Aí segue-se mais ou menos à deriva junto ao fluxo principal pois, mesmo incomodados e desacreditados, não se sabe muito bem quais outros rumos tomar. Os que já tomamos para ser o que somos, já não nos individualiza e difere o suficiente? A quantidade de escolhas necessárias para conduzir a vida em nossa complexa sociedade já não nos torna automaticamente autênticos? Ou nossas escolhas são feitas a partir de leques de opções já bem abertos e disponíveis, de modo que o que somos é previsto e padronizado, como se nossa vida ou morte não fizesse qualquer diferença no conjunto da sociedade, e como se fossemos peças dispensáveis e substituíveis? Somos instigados a fazer escolhas a ponto de nos acharmos distintos, mas nossa individualidade é em geral institucionalizada. As trilhas são bem abertas, e os dramas, mesmo os mais pessoais, não são dramas desconhecidos. Todo o mecanismo social, econômico e político é ao mesmo tempo grosseiro e complexo, e a vida aí tende a ser grosseira e caótica, ou entendiante e banal. A proliferação de religiões, igrejas e gurus torna explícita a necessidade de guias espirituais, orientadores de conduta e tranquilizadores de consciência.

É claro que temos a opção de trabalhar desde dentro da estrutura mais sedimentada da cultura para a partir daí buscar a efetivação de alguma alteração significativa,  nos engajando em trincheiras não tão abertas. Se não há possibilidade de rompimento definitivo com a cultura, deve haver ao menos como efetuar alguma alteração, ainda que muito específica, no quadro mais geral das coisas. Em geral, acompanhamos os costumes e as tradições, e os questionamos apenas quando os questionamentos já são previstos - a dinâmica cultural mantém seu curso também através destes questionamentos, afinal. De todo modo, neste contexto de incertezas que tende à homogeneização absoluta de todos os fazeres, alguns se destacam. Chamam arte a estas produções que fogem à regra de seu tempo.

O caráter plástico da existência é relativamente conhecido: sabemos da possibilidade de alterá-la de acordo com nossas vontades e pensamentos. A questão é não encontrar na prática cotidiana as condições que propiciem a formulação de pensamentos e vontades com os quais nossos anseios vitais mais profundos possam corresponder, de modo que para muitos eles permanecem como se não existissem. Tal é o modo desconexo como nossos ideais e nossa prática não se encontram em nosso cotidiano. Que dirá da possibilidade de concretizar estes ideais quando em virtude de um trabalho homérico, pela arte ou pela filosofia, eles se tornam demonstráveis ou apresentáveis (posto que a ciência apenas ocupa na medida em que se aproxima destes outros campos). Uma forma de colocar em questão os sentidos do desenho que compomos com nossa vida, é suspender estas formas mais usuais, imediatas e irrefletidas, e experimentar outras. Daí o desenvolvimento do caráter crítico da arte na modernidade e sua aproximação da filosofia. Tal como escreve Foucault: “A crítica consiste em desentocar o pensamento e em ensaiar a mudança; mostrar que as coisas não são tão evidentes quanto se crê; fazer de forma que isso que se aceita como vigente em si não o seja mais em si. Fazer a crítica é tornar difíceis os gestos fáceis demais. Nessas condições, a crítica —e a crítica radical— é absolutamente indispensável para qualquer transformação”.

No espaço cotidiano, pelas exigências da vida prática mais imediata, estamos muito distantes da liberdade requerida para "desentocar o pensamento" e "tornar difíceis os gestos mais fáceis". O espaço da arte, por outro lado, não apenas admite como estimula este procedimento crítico assumido como "exercício de liberdade", como definiu Mário Pedrosa. Claro que a autonomia da arte é relativa e justamente por envolver um tipo distinto de processo produtivo, processo significativo por sua própria forma de fatura idealmente desconexa das exigências mais imediatas da vida prática, ela acaba por tornar-se produto de interesse especial. Perderemos o foco, no entanto, se nos concentrarmos no fato de que em nosso tempo muitos se aproximam da arte buscando investimento, ou representação de status, porque afinal estes interesses estão de acordo com a estrutura geral de nossa cultura e não possuem chance de representar qualquer mudança significativa.

O que há de verdadeiramente relevante a se pensar na arte é que a partir deste espaço problematicamente autônomo ela possui a capacidade de atrair o que eu e um amigo dia desses chamamos “eremitas”. Explico: os eremitas a que nos referíamos são aqueles que sentem lá no fundo da alma o chamado da arte, e precisam de algum modo aproximar-se dela. Os que, quando ouvem o som, sentem a batida de tal modo que não podem resistir ao movimento. Os que são portanto verdadeiramente afetados por ela e não podem recusá-la. Nestes casos, a arte propicia experiências que são elas mesmas simples modos de sentir e pensar, modos de se comportar e viver. Todo homem ou mulher é, na medida em que habituado a viver em ambiente aridamente individualista, um pouco eremita, e cada um sabe o que lhes move verdadeiramente - caso não saiba, o artista por seu trabalho pode fazê-lo descobrir! É necessário portanto um eremita mais radical - o artista - para dedicar-se com afinco a viver o sentido destas experiências, com vistas a potencializá-la para além dele, efetuando ganchos. Por estas experiências, a arte possui poder conector e transformador: pelo que faz sentir e pensar, ela propõe a constituição de um modo de viver. Isto esta compreendido, por exemplo, nas Cosmococas de Helio Oiticica e Neville D'Almeida: fazer arte é plasmar uma realidade, ou ao menos clamar por outra realidade. As produções mais ambiciosas surgem desse modo, como se, marginas e periféricas, ao menos no que se refere aos discursos mais presentes em nossa cultura, pretendessem que a cultura viesse a se desenvolver ao redor delas, ao menos por alguns instantes - como se desejassem constituir novos núcleos. As propostas possivelmente mais realistas pretendem plasmar espaços de debate, focos na cultura que sejam germes de transformações de modo mais estratégico. São trabalhos poéticos, críticos e conceituais que revelam abstrações na maioria das vezes de cunho social ou filosófico. Se sabemos acompanhar, algumas destas abstrações podem conduzir o espírito pensante às alturas, alturas próximas decerto àquelas que foram necessárias ao artista chegar para produzir estas obras, e desde lá, algumas delas podem fazer ver questões não tão evidentes, questões “do mundo” e, de modo mais ou menos explícito, sugerir mudanças políticas ou sociais em grande ou pequena escala. Em qualquer caso, os eremitas inevitavelmente embarcam nas propostas das experiências que lhes move, porque possuem o desejo irrecusável de viver e discutir estes sentidos e estão, por isso, dispostos a se debruçar sobre eles, simplesmente porque não há nada que lhes toque tão fundo. A arte é o sentido mais intenso e profundo da experiência de viver e por isso nada na vida faz mais sentido do que a arte.

Se a crítica puder ser aliada destes ideais mais românticos, talvez a arte possa ser reivindicada para muito além do campo que tradicionalmente reivindica autonomia, tal como era a proposta do velho projeto utópico. Aí, na medida em que a instrumentabilidade de nossos fazeres mais usuais for reduzida pelo reconhecimento do "valor em si" de cada uma delas (tal como propõe o Yoga com a respiração), aí talvez outras atividades poderão ser consideradas com a mesma dignidade da arte, e então o núcleo de nossa cultura lentamente se tornará outro.

"Um certo tipo de espírito anárquico foi necessário para dissociar da estética a produção de tipos específicos de objetos, configurando-a outra vez como ‘comportamento-vida’, ‘atos de vida’” 
...
"sinto que a vida em si mesma é o seguimento de toda experiência estética”
...
"Museu é o mundo; é a experiência cotidiana" 

Helio Oiticica