domingo, 7 de novembro de 2010

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Tem se tornado quase uma obsessão pra mim, pensar em todas as coisas colocando-as em relação a um sistema binário descrito por inúmeros termos "inconciliáveis e ao mesmo tempo indissociáveis" como racional/sensível; consciente/inconsciente; cultura/natureza, forma/conteúdo, etc. É que o 'sistema' tem funcionado...acho. Pode estar se tornando uma quase paranóia, ("paranóia", "obsessão", não deve ser boa coisa) mas buscar o dentro do fora, a profundidade da superfície, o conteúdo da forma, assim como o inverso disso tudo numa espécie de jogo reflexivo sem fim, tem sido delicioso. Ficar aqui dizendo isso pode parecer meio pedante, mas é que é uma 'descoberta' recente; e só eu sei como quando escrevo - e depois leio e releio, discutindo autistamente comigo mesmo - processo e reprocesso estas questões de modo que elas acabam se tornando altamente determinantes dos rumos que tenho tomado fora daqui. Aliás, esse esquema dicotômico tem se insinuado pelo menos na conclusão de quase todo texto publicado por aqui e meu leitor deve ter a sensação de que me repito. De fato me repito - é que estou assimilando estas idéias.
Em uma aula de filosofia, por exemplo - em que surjo como intruso quase completo já que não sou um aluno regular da área nem nada do tipo -, além do tema já normalmente absolutamente viajado e viajante, me interessa pensar nas razões conscientes ou não da expressão corporal e do gosto duvidoso do professor que fala de dentro de uma blusa de incômoda gola alta; e da cor, do penteado e do corte de cabelo de uma aluna, passando pelas razões da infantilização dos apaixonados, da super preocupação de algumas mães, da revolta de alguns filhos, da repetição de certos padrões de relacionamentos, do resultado das eleições, dos falsos moralismos, dos comportamentos agressivos incitados pelo consumo excessivo de álcool, das inclinações de minhas próprias letras no caderno, da constelação de pintas no braço do meu colega logo em frente; é claro que tenho dificuldades em me concentrar...já nem sei bem sobre o que estou falando!
Me disseram que se chama "impulso epistemofílico"; e que o meu é muito grande. Não fosse esse sistema de polaridades que me permite agora em alguma medida dar conta do mundo (!), seria provavelmente patológico (agora é apenas megalomaníaco). Ele aparece como uma inconformidade enorme com a ignorância, minha própria ignorância, com relação à vida e todas as coisas nela. A sensação deve ser como aquela do 'sublime' - tanta história, obra, informação e experiência mais ou menos à disposição que o curto trajeto deste ponto que é minha própria vida presente com "todas" suas experiências, parece insignificante, quase me tira o ar. Se não me visse como parte dessa zona toda (graças a esse esquema - sujeito/objeto, no caso) eu provavelmente não encontraria meu lugar - murcharia, inerte. Mas como todo lugar e nenhum lugar é meu e não meu, eu opto por me construir a partir dessas relações, permanentemente, até morrer, enrugado, "sabido" e querendo saber mais, de preferência.
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Não estou bem certo de quem, mas sei que já ouvi críticos e artistas admitindo que educaram-se ou educam-se em público. De início isso me causava algum estranhamento. Decerto achava que antes de publicar um livro ou expor uma obra deveria-se estar pronto. Mas nunca se está pronto, certo? O processo é que pode, ou não, ser interessante.

"isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além"
Paulo Leminski

Boto fé! ;)
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5 comentários:

  1. Meio filhodaputa em pegar um baita texto e comentar a única frase que não está diretamente colada a ele, mas tenho que fazer isso pois é o único comentário sincero e não-forçado que poderia fazer agora, sendo assim, o único espontâneo.
    Pois bem. Sobre a frase "Mas nunca se está pronto, certo?". Naquele diz-que-diz que estamos acostumados a ouvir sobre artistas/obras, já ouvi dizer que um dos motivos para o Cildo colocar um período de tempo nas datas de seus trabalhos, como "1967-1984" em "Desvio para o Vermelho" é o fato de que, para ele, a obra não estava completa em 1967, mas foi sendo feita/refeita, vista/revista, pensada/repensada entre 67 e 84.
    Talvez seja até um fato óbvio e eu esteja naquelas de achar que estou com uma grande informação nas mãos, mas são essas as coisas boas que sempre valem informar (ou avisar, dependendo de quão informado é quem dialoga contigo).

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  2. uia...bacana!...tem q liberar informação mesmo...sei q vc tem muitas por aí...
    Nunca tinha me atentado pra isso. Acho q vou adotar o procedimento...serve já com meus textos...nunca estão de fato acabados quando os termino. aí rolam inúmeras edições. a data que aparece no topo fica sempre defasada, pra não dizer mentirosa...=p

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  3. quer uma loucura maior ainda? Comece a pensar que essas dicotomias não existem, ou que são meras invenções da nossa cabeça.

    =p

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  4. =)...to pensando aqui que antes de dicotomias, 'conceitos' são "meras invenções da nossa cabeça", não? pode-se referir a uma coisa real, como "cadeira" por exemplo, mas o conceito de cadeira só existe em nossa cabeça...e no entanto a utilidade de conceitos bem definidos não se questiona, certo? Não acho q seja diferente com dicotomias.

    Quero dizer que não se trata tanto de existirem ou não (de serem as dicotomias reais ou não), mas de não recusá-las por entender que sejam 'úteis'. Entendo que queira dizer que as contradições que as dicotomias descrevem não existem - são falsas; mas é justamente nesse sentido que preciso dizer que concordo e discordo - simplesmente negar dicotomias, como vc sugere, me parece que diminui a loucura, ao invés de torná-la maior...rs

    Meu interesse em afirmar dicotomias não é meramente o de afirmar as oposições entre os termos que as compõem, como se a pura apresentação de dicotomias resolvesse alguma coisa; elas são partes de um processo em que o objetivo é melhor perceber a natureza destes termos, para problematizá-los - afirmar, desfazer, negar e afirmar novamente estas oposições; é um modo de tomar a coisa de maneira dialética - por isso considero que elas existem e inexistem, ao mesmo tempo.

    Sua "utilidade" estaria na contribuição com relação ao desenvolvimento das questões investigadas - daí que diga que tem "funcionado". Como meu post deve deixar evidente, é esse processo que me parece instigante.

    Reconhecer dicotomias, ao invés de negá-las ou considerá-las "superadas", revelaria um despudor em reconhecer as contradições que são muitas vezes o cerne de muitos problemas - não enxergar oposições seria não enxergar propriamente o problema;

    diferente de afirmá-las, pura e simplesmente então, elas propõem um enfrentamento tão direto e franco quanto possível do problema.

    Um exemplo de como essas dicotomias me aparecem na prática (na prática da teoria, no caso) está nesse meu último texto, sobre a pichação na bienal.

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  5. Não sei se me complico ou me esclareço, mas vou improvisar alguns outros exemplos, mais sucintos, por aqui mesmo...posso considerar sobre natureza e cultura, por exemplo, que a nossa cultura se desenvolveu no interior de uma série de determinações naturais, por ser uma cultura, afinal, humana. Isso contaria "contra" a dicotomia - a cultura só existiria dentro da natureza e a partir dela, e a natureza, em grande medida, dentro da cultura; No entanto, isso não me impede de perceber o conflito gerado por um estado da cultura que coloca a natureza em risco - um desenvolvimento cultural que é obviamente antagônico ao desenvolvimento da natureza (vide a discussão acerca da insustentabilidade, ou mesmo o caso da chuvarada no Rio de Janeiro) - nestes casos a dicotomia se afirma; A coisa se complica se consideramos que sem natureza não há cultura (dicotomia negada pela relação de dependência entre as duas), mas sem cultura há uma natureza (o que deve sugerir uma relação de hierarquia).
    ...
    Mesmo que originariamente não houvesse qualquer real oposição entre cultura e natureza, como pode essa oposição não haver se firmado após séculos de desenvolvimento de um certo modelo cultural que se viu desconectado da natureza? Mesmo que fosse possível negar agora a oposição, isso não modificaria o impacto dos anos em que se agiu em conformidade com ela. Ou seja, nosso sistema cultural é oriundo em muitos aspectos de uma crença cega em uma dicotomia entre cultura e natureza que acabou, por isso mesmo, muito pouco problematizada; para fazer menção àqueles termos, q são de autoria de Suely Rolnik, se considerou apenas os aspectos em que homem e natureza são inconciliáveis, não tanto aqueles que os fazem indissociáveis. Talvez um desenvolvimento cultural que melhor reconheça os pontos de concordância e indissociabilidade entre homem e natureza, seja o dos povos indígenas; a nossa cultura se desenvolveu a partir da idéia de que o homem precisa resistir à ela - agir contra ela - e, por isso mesmo, é em grande parte afirmativa dessa dicotomia.

    Consideremos ainda 'corpo e mente' (oposição que deve envolver tb 'razão e sensível'); mesmo que leve em conta a maneira como se desenvolve a questão desde a negação cartesiana do corpo dada por seu "penso, logo existo", até o "corpo pensante" da fenomenologia, preciso reconhecer que até um certo ponto meu próprio corpo é estranho a meu pensamento. Em algum texto no blog lembro q citei os exemplos da excitação sexual e da menstruação...poderia acrescentar ainda o da doença, ou deficiência: como não há contradição entre um pensamento "são" (bem estruturado) e um corpo doente q não permite, por exemplo, a pronúncia? ou um corpo convulsivo que "não obedece"?

    Daí que negar dicotomias, do meu ponto de vista, seja uma loucura menor; é escolher tratar de questões percebendo somente aquilo que há nelas de indissociável sem perceber suficientemente o que há de inconciliável. As dicotomias, por fim, colocam o problema todo, em toda sua complexidade...elas não são afirmadas por elas mesmas, mas pelas faíscas que geram.

    Tentei ser claro e acho que acabei repetitivo...

    De qualquer forma, muito bom ter sua presença por aqui. Comento pouco, mas gosto muito de acompanhar suas reflexões no seu blog - não sei tanto quanto à escrita, que pode ser árdua, mas a leitura é sempre fluída e gostosa...

    Abraço

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