sábado, 23 de fevereiro de 2013

Sobre tradições

Quando nas academias aprendemos a desenvolver e pensar a arte em relação a uma tradição eurocêntrica e ao trabalho de artistas nela bem situados, nem sempre é propriamente problematizada a nossa identificação como parte ou extensão desta tradição. Embora se proclame o fim da história da arte, a linhagem quase exclusiva com a qual nos identificamos não deixa enganos: a história e a tradição sobrevivem. É evidente que durante um tempo se desejou aproximar de um modelo cultural que se acreditava ideal, próspero e bem desenvolvido. Mas questionado o modelo cultural tradicional com sua pretensa singularidade, e compreendida a riqueza da diversidade cultural não hegemônica, qual o sentido ideológico de continuar pensando quase exclusivamente a produção estética realizada no Brasil em relação àquela tradição? Qual o sentido de reconhecer ainda o valor artístico de obras de arte nacionais pela forma como se relacionam com aquela tradição?

Não pretendo sugerir a preservação de algo como uma identidade cultural genuinamente brasileira – autêntica e totalmente livre de influências ou entrecruzamentos. Não penso em algo como a cultura do país, nem creio que haja nada como a cultura de um país, muito menos uma cultura “pura” ou estática. Há a cultura das pessoas que são várias e cresceram em diferentes partes constituindo aqui e ali com seus hábitos e costumes diferentes histórias pessoais. Seria artificial pensar numa cultura brasileira, mas útil, certamente, pensar o modo pelo qual, por interesses políticos e econômicos, se configura entre espaços bem delimitados geograficamente um quadro de imperialismo cultural gradativamente consentido e naturalizado por cidadãos nem sempre cientes dos interesses maiores que regulam a conformação de suas próprias práticas. A este quadro nos submetemos diariamente de modo generalizado inclusive nos ambientes de arte mais legitimados.

Porque a arte em nosso país ainda é pensada tão restritamente em relação à tradição de linhagem branca? Por que é tão secundária a consideração de outras culturas? Porque, por exemplo, os índios são tão generalizadamente os outros de nossa história? Por acaso mantemos o mesmo regime de interesses econômicos e exploratórios dos nossos invasores? Porque repetimos tanto os mesmos nomes de teóricos e artistas na reflexão de nossa arte e reforçamos a lógica evolutiva que sugerem? Em que medida nos interessa identificar de modo tão enfático nosso trabalho com os trabalhos produzidos antes na Europa e agora nos EUA, e em que medida fazendo-o não atualizamos nossa posição colonial diante de uma política cultural imperialista?

Se vamos refletir e assumir criticamente nossas referências estéticas, é básico perguntar a direção a que vamos orientar nosso olhar. Confesso certo cansaço de Picasso, por exemplo, mas ao menos a arte moderna possui o mérito de ter ela mesma implodido com a tradição que lhe tornou possível...Como bem demonstraram Helio Oiticica, Lygia Clark e Mário Pedrosa, com a abertura do campo da arte temos a oportunidade de ampliar nosso horizonte de referências possíveis. Por que não o samba, a favela, a clínica, os índios...?

Olhares mais amplos capazes de compreender práticas e manifestações culturais mais diversas implicam a liberação intelectual de um modelo que ainda limita a produção artística de nosso país. De que outra maneira se pode compreender a assepsia que tem se apresentado, com raras exceções, em nossas mostras contemporâneas? O interesse da tradição europeia é óbvio, mas não é único. Ainda cabe lembrar: o mundo é muito mais amplo que a Europa e os Estados Unidos; e nossa arte, muito mais rica.

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