Quando se fala das cisões ou dissociações da modernidade
entre coisas como matéria e espírito, ou corpo e mente, razão e sensibilidade, sujeito
e objeto -, isso não é nada de muito abstrato. Basta considerar os momentos em que
o foco de nossa atenção se distancia e desliga dos dados de nossa percepção, e imerge
nos “irreais” obscuros de nossa imaginação ou de nossa memória abstraente.
Antes, basta considerar a desconexão entre o lugar do corpo-sujeito e o lugar
do pensamento-objeto na própria diferenciação proposta aqui entre um “irreal”
mental, e um real sensível. Ora, se fosse possível partir do problema já
resolvido, ele já não seria um problema. Assim, ao mesmo tempo em que o diagnóstico
afirma a dissociação, ele o reconhece - o que se expressa nas aspas - pretendendo
constituir um movimento na direção de sua superação.
É evidente que nossa capacidade de abstração não é negativa.
Não se trata de recomendar sua supressão na direção do sensível, como se por
certo desencantamento em relação à modernidade fosse possível uma espécie de
retorno à uma condição primitiva perdida, e muitas vezes idealizada, ou como se
os pensamentos tivessem de se conformar aos dados sensíveis do presente, o que
muitas vezes se procura à base médica. Sem certa capacidade de abstração
pessoal, mesmo a escrita e a leitura seriam impossíveis, não teríamos
repertórios que nos permitiriam a identificação das letras, nem meios para
articular as palavras e os sentidos que vem antes aos que vem depois. Esta
capacidade de construir significados e sentidos a partir dos “irreais” fundados
em nossa sensibilidade é o que nos difere dos demais animais, e o que está na
origem de fenômenos modernos tão distintos quanto o individualismo, a ciência,
e a arte - algo que portanto não pode ser simplesmente suspenso ou ignorado. O
cultivo de nossa “irrealidade” pessoal pode ser admitido em contrariedade às
dissociações e cisões da modernidade, pois ao invés de conduzir à perda de
contato com o mundo sensível, ele, inversamente, o constitui: antes então da
supressão de nossa “irrealidade”, a busca da coincidência no mundo sensível.
Isto ocorre quando as qualidades reais do nosso corpo ativo nos levam a descobrir
os correspondentes imediatos de nossas “irrealidades” no mundo sensível, de
modo que elas cessam de existir como “irrealidades”, e fundem-se ao real
sensível. Isso de certo modo ocorre aqui, pois se penso essas coisas, escrevo
para abstrair colado ao mundo sensível. A realidade do pensamento se expressa
na qualidade sensível da escrita ou da fala, assim como o sofrimento se torna dor
e lágrima, e a música, na dança, movimento. É verdade que, talvez, por não ser
tão bom escritor, há alguma distância entre o pensamento e a escrita, mas nos
momentos de maior inspiração ambas as coisas coincidem, o pensamento escreve, a
escrita é pensante, e toda minha “irrealidade” se realiza. Nessa coincidência,
a fala falante, e não falada, transforma aquilo que era mera potência na
imaginação ou no pensamento em coisa real, a ponto de ser algo como um
pensamento audível. Esse processo envolve assim certa transparência, no sentido
de que o “irreal” transborda sem reservas no real sensível. Ora, é bonito ver
num trabalho de arte a realização de um irreal, e é muito mais do que apenas
bonito se ele permite a realização de nossa irrealidade.
*
Embora
seja verdade que nenhum estímulo seja verdadeiramente o mesmo, sentimos ser
evidente que nem todo estímulo precisa ser verificado como se fosse totalmente
novo. Não precisamos sempre nos aproximar do fogo, por exemplo, para saber que
ele queima. É, portanto, a partir do que sentimos ser, por nossa própria
experiência, seguro e conhecido que nos conformamos ao que nos parece a
realidade de nossas vidas, e a partir daí operamos. Por isso atribuímos à nossa
percepção da realidade o caráter de verdade, embora muito constantemente nos
enganemos. Quando por exemplo compreendemos um estímulo de uma forma específica
sem achar necessário buscar formas mais rigorosas de verificação, e erramos: do
instante em que penso ter ouvido a voz de minha mãe, até o instante em que
descubro na realidade não tratar-se dela, o que ocorre é uma ruptura com a ideia
de realidade que compreendo ser verdadeira pela experiência dos meus sentidos.
Tão logo nos sentimos enganados ocorre a substituição de uma idéia de realidade
por outra, esta sim acreditada como verdadeira: não era minha mãe.
A atribuição de valor de verdade à realidade precisa ser
suspensa pra que seu caráter plástico seja evidenciado pela própria dimensão do
possível. Claro que todo o possível da realidade jamais poderá ser totalmente apreendido
pelo próprio movimento constante e nunca repetido da existência, mas é
importante, de todo modo, estar sempre aberto a sua consideração. Não é que
devamos passar a buscar comprovação de que o fogo queima a cada vez que nos for
dada à intuição, pela sensibilidade, a existência do fogo. Trata-se antes de manter
em suspenso o que se pensa saber pela experiência: antes de deduzir à distância
segura a queimadura, sentir o calor. Manter a consciência desperta e receptiva envolve
uma suspensão do supostamente conhecido, e, portanto, dos preconceitos, dos
hábitos, dos costumes, e da cultura de modo geral.
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