segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A primazia do sensível e a experiência do presente contínuo

A percepção do que consideramos ser a realidade depende de nossa capacidade reflexiva de processar estímulos sensíveis. Como este processamento ocorre na relação contínua que estabelecemos com as coisas do mundo através de nossos sentidos e sistemas receptores, podemos considerar que tudo aquilo que percebemos existir no mundo sensível existe, enquanto percebemos, em nossa sensibilidade. Se a nossa sensibilidade se estende ao mundo através de nossos sentidos reflexivos e a “realidade” depende assim de nosso contato direto com as coisas do mundo, as coisas que julgamos existir num dado momento fora do alcance de nossa percepção sensível são “irrealidades” - tais como memórias, crenças, imaginações, abstrações e suposições –, algumas das quais se manifestam na realidade de nossa sensibilidade sob a forma de sentimentos e sensações que nem sempre reconhecemos com clareza. Mas enquanto alguns destes “irreais” podem parecer obscuros ou incertos, outros nos parecem lógicos e confiáveis, de modo que é possível dizer que toda possibilidade de conhecimento depende dessas nossas “irrealidades” particulares, algumas das quais estatisticamente comprovadas dentro dos limites de nossa experiência sensível. A fonte última deste conhecimento é a percepção, pois o plano sensível é o único âmbito comum de nossa existência, e só por ele toda nossa “irrealidade” se integra ao que compreendemos como o mundo real, embora a ideia de um “mundo real” para além da nossa percepção individual seja já uma abstração e, nesse sentido, um “irreal”. Esta possibilidade de integração de “irreais” a partir do sensível nos permite generalizações, sistematizações, compreensões, e, no limite, o desenvolvimento de coisas como a linguagem e a ciência, por exemplo, e não há nada que se nos apresente aos sentidos sem que conectemos a “irreais” pretendendo compreender os objetos de nossa percepção. Isto, porém, ocorre numa esfera muito limitada, e nunca de modo absoluto, pois a compreensão total dos objetos de nossa percepção será sempre um “irreal”, algo como uma mera ideia, pois ao ver um lado do objeto, perco o outro; ao me distanciar para observar o todo telescópico, perco a proximidade microscópica; e mesmo que acreditasse que o esgotamento dos modos de percepção de um objeto fosse possível, ele dependeria de tempos distintos, e o tempo é já uma abstração, e portanto um “irreal”. Aquilo que existe é sempre pontual e infinitamente extensivo em sua parcialidade – é presente contínuo. Seríamos no entanto como bebês que assistem passíveis à gênese assustadora do mundo a cada instante, não fosse essa nossa capacidade de efetuar sínteses a partir da parcialidade de nossas experiências e a partir delas julgar que conhecemos os objetos de nossa percepção. Com efeito, nos surpreendemos muito pouco depois de adultos, pois nossas vidas se desenvolvem de tal forma padronizada que frequentemente julgamos que as coisas se repetem e que por se repetirem, já conhecemos todas as coisas. Nos valemos convictos de “irreais” para instrumentalizar toda a existência então normalizada, sem que no entanto a percebamos em sua realidade originária. Somos treinados para fazer cálculos e temos toda a sensibilidade engessada.


Quando se fala das cisões ou dissociações da modernidade entre coisas como matéria e espírito, ou corpo e mente, razão e sensibilidade, sujeito e objeto -, isso não é nada de muito abstrato. Basta considerar os momentos em que o foco de nossa atenção se distancia e desliga dos dados de nossa percepção, e imerge nos “irreais” obscuros de nossa imaginação ou de nossa memória abstraente. Antes, basta considerar a desconexão entre o lugar do corpo-sujeito e o lugar do pensamento-objeto na própria diferenciação proposta aqui entre um “irreal” mental, e um real sensível. Ora, se fosse possível partir do problema já resolvido, ele já não seria um problema. Assim, ao mesmo tempo em que o diagnóstico afirma a dissociação, ele o reconhece - o que se expressa nas aspas - pretendendo constituir um movimento na direção de sua superação.

É evidente que nossa capacidade de abstração não é negativa. Não se trata de recomendar sua supressão na direção do sensível, como se por certo desencantamento em relação à modernidade fosse possível uma espécie de retorno à uma condição primitiva perdida, e muitas vezes idealizada, ou como se os pensamentos tivessem de se conformar aos dados sensíveis do presente, o que muitas vezes se procura à base médica. Sem certa capacidade de abstração pessoal, mesmo a escrita e a leitura seriam impossíveis, não teríamos repertórios que nos permitiriam a identificação das letras, nem meios para articular as palavras e os sentidos que vem antes aos que vem depois. Esta capacidade de construir significados e sentidos a partir dos “irreais” fundados em nossa sensibilidade é o que nos difere dos demais animais, e o que está na origem de fenômenos modernos tão distintos quanto o individualismo, a ciência, e a arte - algo que portanto não pode ser simplesmente suspenso ou ignorado. O cultivo de nossa “irrealidade” pessoal pode ser admitido em contrariedade às dissociações e cisões da modernidade, pois ao invés de conduzir à perda de contato com o mundo sensível, ele, inversamente, o constitui: antes então da supressão de nossa “irrealidade”, a busca da coincidência no mundo sensível. Isto ocorre quando as qualidades reais do nosso corpo ativo nos levam a descobrir os correspondentes imediatos de nossas “irrealidades” no mundo sensível, de modo que elas cessam de existir como “irrealidades”, e fundem-se ao real sensível. Isso de certo modo ocorre aqui, pois se penso essas coisas, escrevo para abstrair colado ao mundo sensível. A realidade do pensamento se expressa na qualidade sensível da escrita ou da fala, assim como o sofrimento se torna dor e lágrima, e a música, na dança, movimento. É verdade que, talvez, por não ser tão bom escritor, há alguma distância entre o pensamento e a escrita, mas nos momentos de maior inspiração ambas as coisas coincidem, o pensamento escreve, a escrita é pensante, e toda minha “irrealidade” se realiza. Nessa coincidência, a fala falante, e não falada, transforma aquilo que era mera potência na imaginação ou no pensamento em coisa real, a ponto de ser algo como um pensamento audível. Esse processo envolve assim certa transparência, no sentido de que o “irreal” transborda sem reservas no real sensível. Ora, é bonito ver num trabalho de arte a realização de um irreal, e é muito mais do que apenas bonito se ele permite a realização de nossa irrealidade.

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Embora seja verdade que nenhum estímulo seja verdadeiramente o mesmo, sentimos ser evidente que nem todo estímulo precisa ser verificado como se fosse totalmente novo. Não precisamos sempre nos aproximar do fogo, por exemplo, para saber que ele queima. É, portanto, a partir do que sentimos ser, por nossa própria experiência, seguro e conhecido que nos conformamos ao que nos parece a realidade de nossas vidas, e a partir daí operamos. Por isso atribuímos à nossa percepção da realidade o caráter de verdade, embora muito constantemente nos enganemos. Quando por exemplo compreendemos um estímulo de uma forma específica sem achar necessário buscar formas mais rigorosas de verificação, e erramos: do instante em que penso ter ouvido a voz de minha mãe, até o instante em que descubro na realidade não tratar-se dela, o que ocorre é uma ruptura com a ideia de realidade que compreendo ser verdadeira pela experiência dos meus sentidos. Tão logo nos sentimos enganados ocorre a substituição de uma idéia de realidade por outra, esta sim acreditada como verdadeira: não era minha mãe.

A atribuição de valor de verdade à realidade precisa ser suspensa pra que seu caráter plástico seja evidenciado pela própria dimensão do possível. Claro que todo o possível da realidade jamais poderá ser totalmente apreendido pelo próprio movimento constante e nunca repetido da existência, mas é importante, de todo modo, estar sempre aberto a sua consideração. Não é que devamos passar a buscar comprovação de que o fogo queima a cada vez que nos for dada à intuição, pela sensibilidade, a existência do fogo. Trata-se antes de manter em suspenso o que se pensa saber pela experiência: antes de deduzir à distância segura a queimadura, sentir o calor. Manter a consciência desperta e receptiva envolve uma suspensão do supostamente conhecido, e, portanto, dos preconceitos, dos hábitos, dos costumes, e da cultura de modo geral.

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