quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Considerações muito gerais sobre a loucura e os limites da normalidade

Neste texto falaremos de loucura e de normalidade como atribuições mais ou menos genéricas a certos tipos de comportamento. Não falaremos do louco, nem do sujeito normal, portanto, pois isto seria como fixar e julgar compreender o todo de um ser qualquer por meros recortes. Nosso objetivo é questionar em que medida a normalidade é realmente desejável, e investigar o que podem ser atos de loucura.

I.

Em suas atribuições mais comuns, a loucura é compreendida como ausência de lucidez e clareza, como insanidade, e portanto, como ausência de saúde - no caso, saúde mental.

A normalidade, por oposição, sugere as condições propícias para a lucidez, para a clareza, para a sanidade, e, portanto, para a saúde.

A loucura descreve o comportamento confuso, obscuro, e débil em relação ao que seria considerado normal em uma dada situação. A aparente ausência de nexo entre os sentidos que a loucura traz à tona não permite muitas vezes o reconhecimento de qualquer espécie de ordem. Ela coloca em questão, com isso, mais do que o estado psíquico de alguém, a própria capacidade de compreensão daquele que avalia e faz o diagnóstico. A loucura revela uma espécie de desconexão em relação à concepção mais habitual de realidade num determinado caso, e é geralmente uma atribuição direcionada a alguém que se revela incapaz, ou inapto a integrar o meio que habita de maneira construtiva. Por vezes, com efeito, a loucura desestabiliza e desintegra a própria ideia de normalidade, trazendo à tona o caótico, o descontínuo, e o desordenado.

A normalidade, por outro lado, é adjetivação que se atribui ao comportamento que se encontra adequado à norma. Ela revela adequação à lógica de seu próprio meio. É, por assim dizer, o comportamento esperado. Comportamento que está de acordo com as ordens estabelecidas, e que assim, não parece representar qualquer ameaça ou risco.

Se consideramos, porém, que a saúde interessa apenas na medida em que permite desenvolver e usufruir nossa potência de vida, e neste processo, enquanto elemento capaz de proporcionar prazer, podemos considerar que o comportamento normal, de acordo com o esperado, está muitas vezes distante das condições que permitem saúde. Com efeito, o mais comum em nossa época é que o prazer se dê nos desvios das normas, quando assumimos riscos, e escapamos ao tédio do comportamento previsível. Assumindo que desejamos muitas vezes permanecer nas margens, como exceções às regras, nos aproximamos então do que seria a loucura para, paradoxalmente, manter a sanidade.

Afinal, se levamos em conta as contradições, as guerras, todo o sofrimento e miséria relacionados à ordem social, em que medida a lucidez pode ser considerada uma característica de quem se adequa às normas¿ Que clareza pode haver naquele que automatiza seu próprio comportamento, mecânico, condicionado, e inconsciente - pois todas estas coisas envolvem o comportamento normativo -, atuando como uma espécie de engrenagem a favor de instituições responsáveis pelo que, de fato, pela própria alienação necessária para a manutenção de todo esse sistema, mal pode ser conhecido¿

Descobrir a possibilidade de prazer e de saúde nos desvios é um primeiro passo para fazer as pazes com o caos em nós mesmos, pois a partir daí podemos lançar luzes sobre as nossas sombras - as partes de nós que são causa de problemas quando escapamos às normas, partes que geralmente repreendemos-, percebendo-as de outras formas. Podemos compreender a partir daí a potência revolucionária, espiritualmente libertadora, do desajuste, ainda que isso acarrete em desobediência - comportamentos não previsíveis: uma espécie de "loucura" bem apropriada.

II.

Poucos, porém, são os que assumem seus desajustes com prazer, e experimentam anormalidades com lucidez. Na maior parte dos casos, a anormalidade é causa mais ou menos imediata de mal-estar, sofrimento e doenças diversas. Por esta razão, o sentimento de inadequação e desajuste costuma ser combatido com terapias e medicamentos de diversos tipos, e também com tentativas de ajuste a nível de aparência, seja em academias de musculação, em lojas de produtos e acessórios, ou em clínicas cirúrgicas. Tudo ocorre como se as norma sociais, por seus sentidos conhecidos e supostamente seguros, indicasse uma espécie de ideal que tivesse de ser de algum modo correspondido, e como se o louco hipotético fosse assim identificado, estigmatizado, por ver-se daí em certas ocasiões desligado: ele não repreende impulsos e vontades que, segundo as normas, deveria.

Infinitamente mais arriscada e incerta do que a normalidade, a loucura pode nos parecer muito mais excitante do que a normalidade, particularmente pela promessa de campos imprevisíveis a desbravar. Se desejamos reivindicar estas linhas de conduta consideradas “anormais”, as quais estariam de acordo com a vontades inadequadas de sujeitos “desajustados”, precisamos verificar as condições mediante as quais elas seriam possíveis. Assim podemos desintegrar a própria ideia de normalidade que ainda vigora - talvez de modo já não tão unitário, é verdade, mas ainda insuficientemente diverso.

Para isso, devemos nos assegurar dos sentidos de nossas loucuras individuais. Faremos isso reconhecendo nelas seu caráter político particular, e reivindicando, a partir daí, o direito à inadequação, ao desajuste, e à singularidade, enfim. Isto significa investir na possibilidade de produção de diferenças, não pelas diferenças apenas, mas pela necessidade de transformação via diversificação de um meio que se encontra, por diversos fatores, homogeneizado. Pois enquanto a diversificação é um produto da afirmação de potências de vida singulares, a homogeneização é fruto da potência de morte.

III.

A loucura sugere distância em relação à normalidade. A esta distância é possível vislumbrar, geralmente com algum temor, a possibilidade de encarnar, fazer existir em definitivo, outra coisa - algo diferente da norma - ainda que não se saiba bem ao certo o que esta outra coisa seria. Pois afinal, a loucura, como já dissemos, nem sempre tem sua ordem propriamente identificada, e geralmente se apresenta, precisamente, como sem ordem, como confusão. Embora toda loucura dê pistas de seus ordenamentos mais gerais, principalmente se consideramos o histórico do sujeito em questão, poucas são as pessoas que se dispõe a colocar estes ordenamentos em relação às ordens mais habituais, aquelas relativas às normas, para que então as eventuais loucuras possam ser mais propriamente compreendidas. Este tipo de articulação, afinal, requer alguma lucidez – capacidade de contato suficientemente íntimo para estabelecer relações dialógicas entre norma e loucura.

Ao considerar a possibilidade de romper normas propondo ordens diversas das mais habituais, tenho em mente a produção de espaços heterotópicos - “espécies de utopias realizáveis”, como propõe Foucault. Penso, basicamente, no desejo poético-filosófico de tomar a vida como obra de arte, como queria Nietzsche, por exemplo. Não ignoro, porém, que Hitler e o holocausto podem também ser compreendidos nessa chave. Campos de concentração, como os de Auschwitz, podem certamente ser considerados espaços heterotópicos do tipo que, para gente como o conhecido ditador, aproximariam a vida (a sua e a das pessoas consideradas de raça ariana) do estado da arte. Hoje, em retrospecto, sua “loucura”, pela forma como rompeu com o que eram os discursos normativos de sua época, não precisa ser sublinhada. O ditador, porém, deixou amplos registros de sua capacidade de dialogar com as condições “normais” de seu período e de argumentar a favor do projeto de transformação que propôs; documentos que nos servem como prova de sua perversa lucidez. É claro que suas ideias traduzem aspectos do Espírito daquele período, mas isso não nos deve impedir de reconhecer o poder de persuasão de seu discurso, particularmente pela forma como foi assimilado pelos alemães à época. O grande medo da loucura, o sentimento de perigo em relação à diferença, assim como a tendência à segurança da normalidade (os códigos a que estamos mais habituados), encontram sua justificativa em exemplos como este. Pois na medida em que a loucura traz consigo a possibilidade de outras ordens, ela guarda a possibilidade de desestabilização da normalidade, o que representa um risco. Daí podemos pensar problemas como a xenofobía, e também a conotação negativa do próprio termo "loucura" - afinal, indicativo de um quadro patológico e de uma postura defensiva em relação ao que é assim nomeado. Pois se bem de perto se revelam as razões particulares do que a princípio pode nos parecer “loucura”, e se assim podemos contemplar nela uma forma muito particular de lucidez, seus sentidos podem nos parecer sedutores a ponto de tornar definitivo o câmbio de perspectivas. A sensação de vertigem que geralmente acompanha o sentimento de saída das linhas da normalidade sugere que, de fato, há um processo de transformação envolvido na possibilidade de acompanhar as direções que ela indica; e se ela indica uma real possibilidade de transformação, quem sabe ao certo onde podemos parar¿ O que nossas eventuais loucuras podem fazer de nós mesmos?

O medo da loucura revela o medo de cair num abismo por um salto da razão no desconhecido. Mas é também possível pensar que já estamos em abismos, e o que nos parece loucura é, na realidade, a própria salvação. O medo, de qualquer modo, é o medo do desconhecido; o medo do novo; o medo de que nos preserva o recuo que nos mantém em seguro acordo com a “normalidade”, afinal, conservadora. Se nos cansamos, porém, do mesmo, e estamos decididos a encorajar a identificação de outras ordens, é prudente questionar, para não repetirmos crimes como aqueles de outras épocas, que outras ordens serão estas¿
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Instruções:
Facultar a possibilidade de identificação de outras ordens, trabalhando na produção de espaços autônomos onde o caos possa ser experimentado de outras formas; para que outras ordens sejam propostas. Assegurar que estes espaços sejam compreendidos como espaços de arte e ter com clareza a noção da arte como "experiência de suspensão de opostos" (ver o Espírito na arte e na filosofia), para que então a diferença possa se desenvolver livremente, sem qualquer forma de oposição e, por conseguinte, autoritarismo.

Observações:

A linguagem, compreendida como o conjunto de formas de que nos utilizamos para nos fazer entender uns aos outros, se estabelece de acordo com ordens relativamente específicas. O sentimento de inadequação em relação à linguagem no trabalho de comunicação de nossas ideias é, por isso, bastante comum: ordens mais verdadeiramente originais em relação às mais habituais requerem outras formas de serem expressas; a elaboração destas formas faz a arte.

Em parte é possível pensar na arte como “cura” para males como a esquizofrenia, mas isso é pobre em relação ao que esse paralelo nos permite conceber. Nós não desejamos o silenciamento de um fenômeno qualquer que ocasione distanciamento em relação as normas, mas, pelo contrário, o desenvolvimento deste fenômeno para que a partir daí outras ordens possam ser identificadas – ordens mais livres, mais diversas e mais de acordo com potências de vida singulares.

Historicamente, a arte é o lugar onde se concentra as realizações mais apreciáveis de indivíduos desajustados em relação às ordens ditas normais. Isso é tanto mais verdadeiro quando se percebe quão pouco admirável torna-se a normalidade com o desenvolvimento da burguesia e do sistema capitalista durante a modernidade, e quão confortável foi para ela a invenção de um campo autônomo para abrigar experiências admiráveis. Felizmente, a arte não permaneceu aí por muito tempo.

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