quarta-feira, 18 de julho de 2012

"Acorda! Acorda! tá na hora de você ressuscitar!" (psychotria)



“enquanto o conhecimento técnico expande o horizonte do pensamento e da atividade do homem, sua autonomia como um indivíduo, sua habilidade para resistir ao aparato crescente da manipulação de massa, seu poder de imaginação, seu julgamento independente parece ser reduzido”. “Nosso mundo parece abandonado a um conflito de interesses” 


Horkheimer 



Nossos tempos são provavelmente os mais dramaticamente complexos e desafiantes da história. A vida na antiguidade grega, pra considerar um exemplo distante, seguia um modelo bastante estático e, consequentemente, impunha a cada cidadão muito menos desafios. A atinguidade não admitia a possibilidade de oposição entre indivíduo e coletividade, ou entre indivíduo e seu destino; na realidade, nem sequer existia a noção de indivíduo pra que a ideia de oposição a qualquer coisa pudesse ser considerada. Os papéis e as funções eram determinados desde o nascimento de cada um, não havendo a possibilidade de mobilidade social. O que não significa que as vidas eram particularmente mais fáceis, mas eram certamente, e obrigatoriamente, mais conformadas já que o número de possibilidades e caminhos a seguir, eram muito restritos. Liberdade era coisa reservada aos homens, enquanto aos escravos, às mulheres e às crianças, cabia apenas a obediência. Pode até ser que as vidas fossem por isso difíceis, mas não eram complexas. Em outros tempos, em especial durante o longo período que chamamos Idade Média, a religião cumpriu bem o papel de fornecer uma narrativa mestra, condutora da vida humana por meio de princípios pretensamente universais que regulavam o comportamento dos homens e das mulheres. Embora noções como as de interioridade e de vontade já tivessem antes disso despontado nos escritos de Santo Agostinho, aspirações pessoais não possuíam ainda o peso que viriam a ter mais tarde, com o desenvolvimento da classe burguesa, quando surge a possibilidade de ascensão social.

É interessante observar que a obra de William Shakespeare seja por muitos autores considerada o marco principal do início da modernidade justamente pela centralidade de elementos como dramas psicológicos e dilemas pessoais. Com a ideia de autonomia do sujeito burguês, a religião perde gradativamente seu lugar e, sem narrativas e verdades universais, as coordenadas das vidas, mais livres, tornam-se mais diversas, e confusas, tal como demonstram as personagens do escritor. A sociedade estratifica-se e nosso modo de vida dinamiza-se. Pelo excesso de estímulos, desconcertante e desorientador, a liberdade de que dispomos é segundo a definição de alguns autores, uma "liberdade precária”. As sociedades contemporâneas incitam à ação e estimulam processos de individualização mais ou menos variados. A partir de um leque de possibilidades institucionalmente dadas, somos compelidos a sermos nós mesmos, a nos realizarmos; coisa que em outros tempos não faria qualquer sentido.

Tomamos então decisões e exercemos em níveis diversos nossa capacidade crítica (ninguém é totalmente determinável, como certa corrente de pensamento já propôs) mas, talvez para eximir a nós mesmos de responsabilidades excessivas, ou por redução mesmo de nossa autonomia e de nossos poderes de imaginação, como sugere Horkheimer na citação que abre este texto, costumamos permitir que nossa vida seja conduzida aqui e ali pela força dos estímulos mais imediatos, pelos hábitos, pelas rotinas, pelos costumes, pelas tendências e pelos discursos hegemônicos. As formas de vida que se desenham quando se deixa orientar por estes fluxos normativos permitem, se tivermos sucesso, termos supridas nossas necessidades mais básicas, tais como alimentação, moradia e educação, não muito mais que isso. O tempo da vida da maioria das pessoas é assim despendido na tentativa, muitas vezes desumana, de assegurar o mínimo necessário para manter a vida. O mais irônico, talvez, é que os maiores interessados em manter a ordem das coisas nem sempre são os de maiores posses (materiais e intelectuais), mas nós mesmos, a chamada classe média de trabalhadores, se é que faz algum sentido falar em classes em nossos dias. Não estando nem lá, nem cá, acreditamos que, com esforço, poderemos melhorar nossas vidas, subir talvez alguns degraus na absurda estrutura de hierarquias sociais que nossos sistema formou e que "compreendemos" como sendo perfeitamente natural. E se conseguimos, subimos bem satisfeitos estes degraus porque o fazemos "por merecimento" (penso no “funcionário do mês” e nas honrarias tradicionalmente concedidas aos que melhor cumprem com suas funções). O que há é cegueira social. Banalização da miséria alheia e da nossa própria mediocridade cultural. Pra que nossa cultura deixe de ser medíocre é preciso que as vidas possam, no espaço de tempo que possuem, dedicar-se a conquista de mais do que o básico; pra que possam compor formas mais ricas e diversas. Pra isso é necessário que a desigualdade social diminua, o que não deve ser tão simples, mas também não pode ser tão complicado.

Não se trata de sugerir um retorno a formas comunitárias de organização social tais como eram a grega e a indígena; o individualismo não é um mal que possa ou deva ser abolido, somos mesmo todos muito distintos e nos reconhecemos através destas distinções. No entanto, da maneira como se desenvolveu socialmente, o individualismo se revelou uma tendência auto-destrutiva. Me parece incrível que o período em que nosso planeta abriga o maior número de seres humanos seja também o período de maior distanciamento entre os homens. É decerto natural quando tanto esforço é investido no desenvolvimento de vidas privadas, e no sentido de promover a distinção através, por exemplo, de formações cada vez mais especializadas. Intimamente podemos até nos achar bastante ricos, mas, enquanto geramos bolhas dentro de bolhas (e nos habituamos comodamente a elas com nossos carros e casas), a esfera pública "lá fora" atrofia, sem grandes interesses. Pra alguma coisa mudar é necessário sairmos de nós mesmos. Temos gostos e ideais comuns a cultivar, e nossos relacionamentos podem ser mais próximos, mais ricos e profundos (menos pobres, superficiais e distantes) do que o habitual. Pra que isso ocorra é necessário primeiramente identificar quais são nossos interesses comuns pra então começar a trabalhar no sentido de estabelecer pontes a partir do interior de nossas vidas privadas. É, em parte, o que este blog tenta fazer.

O horizonte é sempre utópico, mas o sentido de nossa marcha cotidiana é real. Não somos totalmente livres, e nunca seremos, mas também não somos totalmente determinados, vítimas da história. As condições de nossas vidas podem ser alteradas se optarmos por modificar a estética de nossa existência.

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