segunda-feira, 30 de julho de 2012

artista. a força e a ironia do desígnio

Se em alguma ocasião ocorre de precisar me dizer artista, sei que evoco algumas noções mais ou menos distintas a meu respeito e a respeito do que faço. A maioria das ideias é profundamente romântica, o que não significa que sejam totalmente desprovidas de sentido. A arte esteve de fato historicamente associada aos mais altos ideais da humanidade, e agora, mesmo que a maioria das pessoas não entenda patavinas do que ocorre na produção contemporânea, a verdade é que algo destes ideais permanece. Com isso, também sei que quando me digo artista evoco alguma suspeita. As pessoas querem logo ver o que faço, reconhecer em meu trabalho a "aura" que o desígnio atrai. Aí, se pinto um quadro, geralmente isso basta. É um mistério porque na realidade ninguém entende exatamente de que se trata. Nem eu; nem meu pai; nem Kant. O lugar da arte entre as demais atividades humanas não é bem certo, e em certa medida, ela parece pertencer a uma esfera alheia à esfera da vida prática - embora já não concordemos bem com isso. De todo modo, algumas pessoas chegam a assumir-se artistas desejando atrair sobre si esta distintividade misteriosa da arte. Talvez por isso alguns de nós se vistam de modo estranho... o que, todavia, obviamente, não basta pra ser artista...basta? Pra distinção do artista ser justificada de verdade, é preciso por à prova certa vocação ou talento, certa sensibilidade. Mas isso todos têm, não? Justamente! Por isso o desígnio causa admiração e suspeita: lá no fundo as pessoas sentem que também elas poderiam ser artistas se tivessem investido suas forças vitais na direção de suas vocações: ainda que sigilosamente, a maioria das pessoas canta, dança, desenha, batuca, fotografa...Pelo ritmo e pelos interesses de nossas vidas, no entanto, nossa atenção é muito dispersa, de tal modo que nossa admiração sobre as formas de nossa expressão não pode deter-se nunca por muito tempo e está geralmente deslocada para além das coisas mesmas que produzimos (isso é especialmente perceptível quando o foco de nosso trabalho é a remuneração, um título, ou qualquer outra coisa que não o próprio trabalho). Por isso, a despeito de que qualquer coisa possa ser arte, e qualquer um, artista, diz-se ainda que arte seja coisa rara: porque embora admiremos muita coisa ao longo de nossos dias, admiramos cada coisa muito pouco, e nem sabemos bem o que andamos produzindo por aí. Nossa admiração fragmentada, faz poucas coisas admiráveis. O artista que se assume, por sua vez, se faz coisas admiráveis é porque admira por muito tempo a própria vocação de fazer arte, o que geralmente lhe parece um imperativo incontornável, mesmo quando arte não é mais que uma noção obscura. No fim, a distinção do artista talvez não seja ideia tão descabida. Mesmo agora que minha vocação inicial, o desenho, esteja um tanto deixada de lado, o foco inicial se mantém (o corpo, e no corpo, a vida, creio), e, como vemos, o foco é o que revela a potência de distinção do artista: o resto é produção em conformidade com aquilo que se admira. Que outra coisa quer quem canta, além de fazer com que a condição real de sua voz coincida com o ideal que ele(a) mesmo(a) dela possui? Talvez esse não seja bem o tipo de distinção que as pessoas esperam reconhecer em artistas, mas especialmente após Duchamp, está tudo bem se elas se frustram. A maior distinção de qualquer artista tem sempre como pano de fundo a mais absoluta indistinção. E se agora o desígnio já não me causa desconforto, é que sei que meu leitor também é artista, bom ou mau, com o que quer que produza.

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